sexta-feira, 29 de outubro de 2010

A solidariedade militar

Diz-se que no tempo militar se criam amizades que ficam para toda a vida. Eu penso que não é bem a amizade o principal elo de ligação para toda a vida mas a solidariedade que fica depois de se partilhar um tempo tão intenso. E o exemplo que eu talvez possa dar mais significativo é o do que ficou, passados tantos anos, em relação ao capitão da nossa companhia. Não foram fáceis as relações com ele: um herói, um militarão, um voluntarista ainda por cima sem a experiência, que vem com a idade, que faz diminuir o voluntarismo. Eu serei o contrário de tudo isso. Além disso a principal característica da minha educação foi o da uma enorme liberdade, sem controles, apenas com avisos tipo – Olha que se não fizeres isto ou aquilo vais-te dar mal no futuro. Nunca com ameaças e sempre permitindo a argumentação contrária. A tropa não é nada disto: manda quem pode, obedece quem deve e ponto final. Foi um choque enorme a ida para a tropa! O capitão era para mim, sobretudo no princípio e depois em alguns outros períodos da comissão, a encarnação do mal que me atacava. Mas, no fundo, sempre achei que era melhor estar com alguém que sabia do ofício do que com um amador qualquer e, por outro lado, eu achava que o comandante sempre nos protegeria, a todos, de eventuais excessos do capitão, que aliás acabaram por nunca se verificarem. O que ficou de tudo isto, quase imediatamente depois do fim da comissão? Uma enorme solidariedade. Uma grande admiração pelas suas qualidades militares e uma certa pena por ele ter tido de aturar milicianos como eu: inexperiente, sem gosto nem jeito para o ofício, um rapazola em formação. Pior era impossível!
Quem neste ambiente terrível, sobretudo no início da comissão como por diversas vezes já escrevi, salvava a situação? A amizade entre os alferes que mantive do princípio ao fim, com um ou outro pequeno percalço com o Guia de que não fui o actor principal mas estava solidário com ele, e a companhia na conversa e na discussão amiga do capelão e do médico. Lembro uma noite em que a discussão foi tão intensa que escrevi no meu diário “o capelão e o Chaves são racistas!” coisa que evidentemente nunca foram mas eu talvez gostasse que eles fossem para ganhar argumentos!

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Ainda as operações

Há mais duas histórias de guerra para mim inesquecíveis embora uma delas me pareça uma enorme mentira nos seus pormenores porque era contada por mim e pelo Zé Aragão com diferentes protagonistas. Esta história passou-se numa operação em que o primeiro e o terceiro pelotão actuaram em conjunto na zona da sede do batalhão em Zemba. Progredíamos na meia encosta de um morro quando, de súbito, fomos flagelados do cimo desse mesmo morro. Rapidamente aproximámo-nos da base do morro em passo quase de corrida (É mais fácil de descer do que subir, já dizia o Veloso de Fernão Mendes Pinto) e aí instalado (conto eu) gritei: onde está o gajo do morteiro? E a resposta veio: o gajo do morteiro sou eu, mas o morteiro ficou lá em cima!
A segunda história passa-se numa outra operação com o Chaves. O meu pelotão vinha à retaguarda num trilho no meio de uma lavra e também fomos flagelados. Atirados para o chão disse aos soldados que estavam à minha frente para disparar dois ou três tiros para o ponto de origem do flagelamento. A ordem terá sido mal compreendida e dos tiros iniciais passou-se a uma fuzilaria inacreditável, com um completo descontrolo de tiro. Fiquei danado e só com muita berraria se conseguiu parar o tiro e continuar a marcha. Essa operação foi aliás uma das que foi completamente falseada pelo Chaves e por mim, graças a Deus.
Falando do Zé Aragão que infelizmente morreu há poucos anos, não posso deixar de mais uma vez lembrar a sua permanente alegria e boa disposição. Fui amigo dele, não muito íntimo, mas desde a infância, na praia, depois num colégio e depois, sem nunca deixar de o ver completamente, em Estremoz de onde íamos e vínhamos juntos todos os fins-de-semana a Lisboa. Na última semana de Estremoz, tendo ele acabado de ser promovido e passado a ter direito a continência à porta de armas, ainda me rio à gargalhada com o que nós nos rimos quando ele, estando eu já cá fora à espera dele, passando a porta de armas e recebendo a continência me diz logo a seguir: - éh pá, viste? Ganda pinta! E realmente é fantástico como mesmo as pessoas que não são sensíveis a deferências, incham com sinais de importância própria mesmo que a importância não fosse nenhuma como era, manifestamente, o nosso caso.

Se Eu Morresse

Um dia uma amiga online fez-me o seguinte desafio: Escrever um poema com o título, se eu morresse.
Contou-me que numa fase menos boa da sua vida pensou em morrer, e tentou escrever um poema com este título, mas não conseguiu.
Talvez por não ser poetisa, disse-me.
Quando recebi a mensagem o meu primeiro pensamento foi para o tempo da guerra em Angola, penso, que todos nós pensámos alguma vez na morte.
Aqui fica o resultado final desse desafio, em forma de soneto.

Se Eu Morresse

Se eu morresse,o meu amor entre vós
Deixaria.Como roseiras floridas,
Perfumando calmamente vossas vidas...
Fazendo companhia aos que vivem sós.

Ficavam minhas saudades como avós
Cuidando dos netinhos, comovidas,
Limpando lágrimas tão sentidas
Que alguém choraria a plena voz.

Levaria comigo os remorsos
D'amizades terminadas bruscamente
Sem direito a mais uma despedida!

Deixaria nesta terra meus esforços
Da labuta que travei amargamente
Na procura de viver a minha vida!

José Diogo Júnior
A boina à “avião” tinha uma explicação. Quando entrei para a tropa em Mafra, numa noite fria de nevoeiro em que me lembro ainda da sensação de “agora é que estou lixado” fui dos últimos a entrar porque beneficiei de o meu pai, tão preocupado como eu, me ter ido levar à porta de armas. A primeira coisa que se fazia, naquele casarão mais do que lúgubre, era levantar o fardamento. Ora tendo sido dos últimos, não havia já nada para o meu número. Ficou tudo a boiar, coisa que me não ralou absolutamente nada nem aos oficias meus chefes que, evidentemente, eram de Infantaria. O pior foi a mudança para Santarém em que “o aprumo” militar era exigido e aí tive que refazer à minha custa a quase totalidade do fardamento para não dar “com os cornos na cadeia” como era ameaçado. Não vindo a propósito neste blog, não resisto a registar que Mafra foi muito difícil, quase tanto como os primeiros meses da comissão, porque para além de ser tudo desconhecidíssimo eu tinha um pai que desprezava a ginástica, o desporto e qualquer actividade física, coisa em que eu o imitava para além de fumar quase dois maços por dia. Lembro a primeira correria fora de Mafra, de talvez uns dois kilómetros, em que eu fiquei com os bofes completamente de fora, logo à saída do Quartel, sentado debaixo da placa da povoação de nome: – Paz! No final da estadia em Santarém até já gostava de correr e em Estremoz lembro-me de ficar espantadíssimo por ou o Justino ou o Gonçalves me dizerem que era preciso abrandar a correria porque já era demais! Mas Mafra não foi só a canseira foram os “galhos”, o leito do Lisandro percorrido à noite com emboscados a darem-nos murros nas costas, a passar túneis com toda a espécie de porcarias penduradas, rastejar debaixo de fogo e sob o arame farpado, a ameaça do pórtico de que sempre tive medo porque tenho vertigens, tudo isto, e muito mais, em novidade e com a sensação de nunca ser capaz de o fazer e a alegria e o espanto de afinal ser capaz. Em comparação Santarém e Estremoz foram muitíssimo mais suaves, não o sendo certamente, a preparação é que era já outra.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Historias da nossa tropa

Quando oJoão Vieira falou no Bom Jesus,imediatamente recordei uma passagem que não posso
deixar de contar. Como já foi dito,estavamos péssimamente instalados o dono da Fazenda ,acho
que era Perola do Quimuanza,querendo ser amavel facultou-nos uma casa que tinha alguns colchões , que aparentemente pareciam razoaveis. O que é a verdade é todos os que lá se deitaram apanharam uma valente camada de chatos inclusivê o nossoSargento Pires.que se
lamentava porque estava prestes a vir de férias ao Continente.
O mais cómico foi já no Grafanil aplicáva -se DDT para os matar, depois talco para eliminar o
cheiro.

O segundo ano

O segundo ano de comissão foi, como já está dito, passado no Grafanil como tropa de intervenção à disposição do comando chefe. A notícia que assim seria foi considerada por nós uma verdadeira tragédia porque acreditáramos que seríamos recompensados pelo nosso esforço e passaríamos o segundo ano numa qualquer vilinha do litoral, com muita praia, sanzalas perto, e sem ameaças de guerra. Mas a verdade é que a tal intervenção acabou por ser bastante descansativa porque logo de início passámos mais de um mês numa fazenda chamada de Bom Jesus, onde, muito mal instalados, dávamos protecção à engenharia enquanto estes abriam uma estrada. Voltámos lá uma segunda vez, onde infelizmente de acidente morreu um homem nosso o que me fez, e ainda faz, a maior das impressões. O Bom Jesus era muito incómodo: dormíamos em barracas, a casa de banho foi construída por nós porque quando chegámos os “anteriores nem isso tinham feito”, uns incompetentes, pensávamos; Mas quanto a guerra não havia e os dias passavam sabendo-se que dentro em breve voltaríamos a Luanda. Depois fizemos, que me lembre, as operações que já contei do helicóptero Puma, a última do rio Zala, a intervenção como polícias a que, confesso, achei a maior das graças por causa do ridículo do nosso aparato nada policial, e uma outra enorme, a nível de Região Militar, com comandos, aviões a jacto e canhões que foi, naturalmente, um falhanço estrondoso sem resultados nenhuns porque o suposto inimigo, se o havia, com tanto barulho não ficou à nossa espera para levar no coco. Lembro porém que a certa altura estávamos num alto de um morro, junto a um enorme canhão e os “artilheiros” dispararam-no, sem avisar ninguém: estabeleceu-se a maior das confusões com parte do pessoal a procurar abrigo para se proteger do ataque a que estávamos a ser sujeitos! O Zé Aragão, do primeiro pelotão, acrescentava a esta história, creio que para a melhorar e para com ela rirmos a bandeiras despregadas, que um soldado, com o susto, se enfiou num oco de uma árvore, ficando com os pés para cima e sem conseguir de lá sair, ouvindo-se apenas a sua voz: tirem-me daqui!
No Bom Jesus tive um momento de maior tenção com o capitão, já não sei as razões, a propósito de uma emboscada que ele me mandou fazer. Amanhã ou depois escreverei sobre as relações entre os oficiais. Na altura pareceram-me impossíveis. Hoje penso que também tivemos sorte em ter um capitão que gostava e sabia do seu ofício. Nada comparado com um outro oficial de cavalaria do quadro, de nome Martins, creio que cruz de guerra, que fez o meu espanto quando estando eu cadete de dia, ainda em Santarém, e ele oficial de dia, num sábado, primeiro correu-me, porque eu estava mal fardado e tinha uma boina que parecia “um avião”, de grande que era para a minha cabeça, ameaçando-me com cadeia (sic: vais daqui vais mas é para a cadeia!) se em dois tempos não aparecesse “bem ataviado”, e, depois, durante o resto do fim-de-semana de convívio e graçolas queixou-se da “merda da tropa” tendo-lhe eu perguntado: – mas então porque é que o senhor é do quadro? Ao que ele respondeu, textualmente: “hó meu amigo, antigamente um oficial de cavalaria de manhã jogava o ténis e à tarde andava a cavalo, agora é que é esta merda”.

O Homem da Coxa

Em dia, provavelmente de festa, o Varela terá feito frango assado para a messe de sargentos, onde a comida era servida já no prato. O Ataíde estava a distribuir os pratos e entrega uma asa de frango a um dos furriéis. Sem ninguém esperar, o homem exalta-se, levanta-se da mesa, devolve a asa e diz bem alto:
- Já sabes que eu só como coxas!
O 1º sargento, sentado na ponta da mesa, e que se assumia como “pai de família”, achou ter havido desrespeito e vá de fazer uma participação. O Capitão Taxa Araújo despachou para eu elaborar o respectivo auto de averiguações. Embora achasse ridículo um auto de averiguações por causa de uma coxa, e ainda por cima de um bípede masculino e com penas, lá fui ler o Regimento de Disciplina Militar, ouvir o faltoso e as testemunhas. Uma grande chatice, como é evidente.
Concluí o auto alegando não ter encontrado nenhuma infracção ao citado Regimento de Disciplina, e fiquei a aguardar como é que o capitão ia descalçar esta bota sem desautorizar o 1º sargento.
Passado algum tempo e diante da formatura geral foi anunciada a sentença, que tento resumir: Tendo em conta que me nasceu mais uma filha ficam arquivadas todas as participações que aguardavam despacho.
Com esta decisão não foi desautorizado o 1º sargento, safou-se o furriel Sá Oliveira, o brasileiro, e safei-me eu, que queria ficar bem com as partes. Na altura pensei que possivelmente ninguém no mundo tinha dedicado mais de vinte páginas a uma coxa de frango. Um autêntico recorde digno do Guinness!

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Historias da nossa tropa

O "eco" e o remate do nosso Cap. para provar que tinha razão recordou-me outra passagem.
Estavamos no Gabinete(só graduados),depois duma operação da qual não recordo o nome.
Era preciso enviar uma sitrep(relatório) para o quartel general contando os acontecimentos
diz o Cap. vão lendo e se tiverem algo a acrescentar ....
Como era da praxe deu ao Guia que de imediato começou a rir, onde é que está a piada?
Diz então o Guia: Enxada escreve-se com X e não com CH, perante esta situação diz o Cap.
Eu escrevo com ch o nosso comandante escreve com ch, e a partir de agora todos vocês passam
a escrever com ch , é claro que apesar do respeito ou talvez medo não deixamos de rir.

Outro levantamento de rancho?

Outro levantamento de rancho?

Há uma outra história armazenada na minha memória que não sei já se se passou como eu vou contar ou se eu a ficcionei. O que garanto é que o que eu pensei é tal e qual o que vou descrever. Todos os dias, naturalmente, havia um oficial de dia e um furriel de dia do mesmo pelotão do oficial. A tarefa era muito simplificada porque, no fundo, consistia em assistir às refeições do pessoal e andar por ali com braçadeira na manga com ar de inspector. O pequeno-almoço era antes da formatura das oito, talvez às sete e meia, já não sei. Sei que eu, como oficial de dia, e estando o capitão na cama, como estava até às oito, raramente, ou quase nunca, assistia ao pequeno-almoço, ficando a tarefa para o Justino ou o Gonçalves. Um dia, dormindo ainda, o Justino apareceu no quarto dos oficiais e disse-me: o pequeno-almoço está uma porcaria e o pessoal não o quer comer. Ora eu estava em falta, não estava no refeitório, o capitão, nessa altura, e provavelmente durante quase toda a comissão, gostaria de ter tido a oportunidade de me dar uma “porrada”. Um levantamento de rancho é, na disciplina militar, uma coisa gravíssima. De modo que fui com o coração nas mãos enfrentar o pessoal esfomeado. Chegado ao refeitório sem inquirir absolutamente nada do estado da comida, dirigi-me a cada uma das mesas e perguntei individualmente: já comeste? E fosse qual fosse a resposta dizia: podes sair ou come se tens fome. Não sei porque milagre em cinco minutos estava tudo fora e às oito lá estavam na formatura. Julguei-me muito habilidoso e respirei de alívio.

O eco

Hoje, falando ao telefone com o Dias, veio-me à memória uma história que se passou com ele mas na frente de todos os oficiais, mais o capelão e o médico. Dá-se o caso que não sei porque carga de água, estando nós em cavaqueira ao almoço, falou-se no “eco” dizendo o Dias que seriam necessários dezassete metros para que o som, batendo num obstáculo, fosse captado no retorno ao ponto da sua origem.
Todos aprendemos da cultura liceal que para haver eco seria necessário pelo menos a distância de dezassete metros para o ouvido captar o retorno do som. Porquê, para se perceber a história, porque o som viaja à velocidade de 340 metros por segundo e o ouvido só distingue sons com 0.1 de segundos de intervalo. Isto é são precisos 0.1*340 metros=34 metros, dezassete para lá e dezassete para cá, para o ouvido ter capacidade de ouvir o retorno, ou eco, de um berro que se dê contra uma parede ou outro obstáculo qualquer. O capitão ripostou que não, que seriam uns metros quaisquer dependendo das circunstâncias. O Dias não se ficou e insistiu que tinha estudado o assunto recentemente. O capitão ficou encarnado e manteve a sua já com os restantes assistentes incomodados com a borrasca que se aproximava. O Dias não teve sensibilidade nenhuma para a humilhação do capitão e insistiu na sua: que não que ele sabia porque tinha estudado e era científico. O capitão perdeu completamente a cabeça e encarnado de fúria e quase a explodir bramou: Hó Dias eu sou capitão, eu tenho três traços em cima do ombro, o eco é como eu digo e estamos conversados.
Na altura pareceu-me uma história inacreditável e altamente significativa. Esquecia que todos tínhamos pouco mais de vinte anos. Mesmo o capitão não tinha trinta, o médico também não chegaria aos trinta e o capelão pouco passaria. Não se tratava de saber ou não uma coisa. Tratava-se de o capitão ter-se deixado encurralar numa opinião insustentável e dele só sairia humilhado o que para ele, como para qualquer um, era um desastre, tanto mais que, como já disse, o capitão tinha todos os defeitos e as virtudes que um voluntarista tem e portanto o eco deveria submeter-se à vontade dele.

A última operação

Voltando às operações. Por mais pequenas que elas fossem eram sempre uma preocupação. Ao princípio por causa do desconhecido e a probabilidade de morte eminente, depois por causa da enorme incomodidade que elas representavam. A maior parte das operações eram feitas ao nível de pelotão, às vezes dois. Raramente três. O capitão ia em muitas mas, naturalmente, não ia em todas. Ao princípio claro que era melhor ir com o capitão, pelas razões que já escrevi. Depois passou a ser melhor ir sozinho ou com o pelotão do Chaves, o segundo, com quem sempre me entendi muito bem, embora sempre me tenha entendido bem com todos. O Chaves e eu, suponho que os outros também, tínhamos a mesma concepção de guerra: quanto menos índio, menos guerra e portanto não estávamos ali com um zelo danado à procura do IN (inimigo). Foi assim que sempre que foi possível a guerra foi diminuída ao mínimo mas, diga-se a verdade, a enorme maioria das vezes não era possível porque o comando não era parvo e planeava as operações de forma a ser quase impossível não as cumprir. A maneira mais fácil de conseguir este objectivo era entrar na mata num determinado ponto e sair numa outra picada paralela e nunca no mesmo ponto. Assim teríamos sempre que avançar até ao ponto de recolha. Apesar de ser essa a regra, uma ou outra vez assim não foi sendo o local de recolha o mesmo da largada ou muito perto dele. Lembro pelo menos duas ocasiões, mas penso que houve mais. Uma com o Chaves em que reduzimos a operação a um passeio, ficcionando tudo o resto pela rádio e a outra, foi precisamente a última operação que fizemos com uma quantidade enorme de tropas envolvidas, com o brigadeiro da Região Militar a sobrevoar-nos em avião DO e nós instalados na margem de um rio de que não lembro o nome, a pouquíssimos metros da picada, escondidos pela ramagem da floresta durante três noites e quatro dias e transmitindo falsas localizações pelo Racall. Lembro sobretudo o momento de enorme irritação que senti, quando a condição de silêncio era absolutamente indispensável e, apesar disso, ouvir o grito irreprimível de “goolo!” que os soldados emitiram ouvindo o relato do Benfica qualquer coisa no transistór! Na altura pensei que não tínhamos condição de fazer nem mais uma operação porque o à vontade de veterano manifestava-se irresponsavelmente! E a propósito registo que o capitão por vezes desconfiava do nosso zelo militar e então, nas nossas costas, inquiria dos soldados o que se tinha passado. Nunca fomos apanhados, graças a Deus!

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Uma das regras essenciais que se deviam seguir para manter o que se chamava “o moral” das tropas era mantê-las ocupadas. O comandante e o capitão eram grandes adeptos dessa regra, creio que com razão, e por isso, mesmo estando no quartel sem nada para fazer era sempre preciso “inventar” qualquer coisa.
Lembro até que no Niassa, além de fazermos formaturas em espaço mais do que exíguos, fizemos sessões de ginástica rudimentares.
No quartel as “formaturas” para impedir que se ficasse preguiçosamente na cama eram às oito da manhã e às três da tarde. E nessa ocasião era apresentado o programa da manhã ou o da tarde para quem ficava no quartel. O trabalho mais comum foi o de “capinar” à roda do arame farpado para que o capim não servisse de esconderijo a eventuais assaltantes que, se tivessem existido, teriam tido que passar um espaço considerável de campo aberto, antes de atingirem o arame farpado. Outro trabalho foi o das obras. O capitão gostava de obras. Gostava de “melhorar” o aquartelamento. E o que é facto é que teve a arte de conseguir arranjar material para obras consideráveis no Mucondo. Quando de lá saímos deixámos mais duas, que me lembre, casernas. O meu pelotão tinha uma data de especialistas em “obras” e tinha, além disso, vontade de ficar com uma das casernas que foram construídas. Foi assim que “negociei” com o capitão que se as obras fossem feitas em passo de corrida o terceiro pelotão ficaria com a primeira caserna feita. Assim foi mas com um enorme percalço: as obras foram tão rápidas, feitas com tanto entusiasmo, que por duas vezes a parede levantada no dia anterior foi abaixo durante a noite com uma qualquer rabanada de vento. Felizmente o capitão foi razoável e lembro-me de lhe ficar grato, sem lho dizer, claro, por considerar ossos do ofício as paredes irem a baixo e portanto os atrasos daí decorrentes não contaram para a ocupação da caserna nova (e boa)
Relacionado com isto e talvez sem interesse para este blog o facto de o capitão ficar furioso comigo por eu não acompanhar a construção civil. Mas eu entendia que o Justino e o Gonçalves faziam melhor papel do que eu, como aliás em muitas outras coisas, e passava essas tardes ou manhãs a ler deitado na minha cama, interrompendo a leitura de vez em quando para averiguar se estava tudo bem, coisa que naturalmente estaria.

Atirador, Padeiro ou Poeta? II

O Carlos Dias, (ex Alferes Dias), deixou aqui uma pergunta curiosa: atirador, padeiro ou poeta?
O atirador passou a padeiro e apenas participou em três operações.
O padeiro acabou como operário da industria de pneus, durante mais de trinta e sete anos.
O poeta, bem o poeta é como alguém já me disse, não sou poeta, sou quanto muito um poeta popular. Eu acrescento, se o conseguir ser,ficarei muito agradecido a Deus, pois isto de ser poeta, (mesmo popular),não é obra de humanos.
Ora vejamos o que diz o poeta:

Ser poeta é ser maior
Nas graças que Deus lhe deu
Só é poeta quem o for
Desde o dia em que nasceu

Ou ainda

Deus o poeta socorre
Pois a arte que lhe der
Nasce com ele e só morre
Quando o poeta morrer

José Diogo Júnior

domingo, 24 de outubro de 2010

Atirador, Padeiro ou Poeta?

Quando da formação do meu grupo de combate coube-me um tipo franzino, pele clara como os da cidade, direi mesmo com cara de miúdo. Uma característica me saltou à primeira vista, isto é, sempre com cara de boa disposição, não obstante o nosso futuro imediato se mostrar muito escuro. Durante a guerra foi um operacional com quem se podia contar, colaborador e nada conflituoso. Foi também um dos padeiros da 2692. O seu pão já foi bem classificado neste blogue pelo Tavares (furriel).
Passados mais de 30 anos fui surpreendido por uma faceta que eu completamente tinha desconhecido. Um dia soube até que ele ia lançar um livro de poesia. Sei que há muitos anos moureja pela estranja, mas aproveitei para o visitar na sua toca de nascimento, por altura das férias. Uma bela aldeia, Erra de nome, situada na zona de Coruche.
Efectivamente o livro de poesia foi apresentado com pompa e circunstância, e muitos foram os seus amigos e admiradores que compareceram ao evento.
Aí fica a fotografia do poeta, por mim ignorado. Como eu gostei de ter ido à tua terra e de ter estado contigo, e com a tua amorosa Júlia, naquela memorável tarde de verão. Obrigado Júnior!

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Hoje, neste post, vou fazer uma “confissão”. Os primeiros meses da comissão, como penso já dei a entender, foram muito duros psicologicamente para mim e creio que para a generalidade do pessoal. A minha confissão é esta: tive, felizmente uma infância e adolescência feliz, sem grandes conflitos e com um pai e mãe muito queridos por nós, todos os irmãos. Nestas condições, creio, ser difícil para qualquer um separarmo-nos dessa vida feliz e, confesse-se, despreocupada. Quem representou nessa conjuntura de enorme infelecidade pessoal do princípio de comissão um papel de amigo, de conselheiro e de tábua de salvação num ambiente que eu considerava mais do que hostil, absolutamente adverso? O alferes capelão padre Carneiro a quem peço a absolvição por no outro post lhe ter dado o nome de Cordeiro. Não foi de propósito mas, não fora o Dias chamar-me a atenção provavelmente o erro continuaria sem eu ter oportunidade de pedir esta absolvição a este amigo a quem estou muito grato pelo papel que teve durante toda a comissão. E mesmo agora lembrei-me da procissão que ele organizou a Nossa Senhora de Fátima, em treze de Maio, à roda do arame do quartel. Um abraço para ele se porventura ler este blog.

Louco Amor

Que a guerra nos roubou, a todos, dois anos da nossa juventude, toda a gente sabe. Que fez milhares de mortos, mutilados e outras formas de invalidez, também.
Mas, talvez, nem todos saibam que muitas vidas foram silenciosamente destroçadas e que camaradas de armas sofreram em silêncio o "mal de amor", que é o sentirem-se trocados, substituídos por outros enquanto cumpriam o seu dever.
O poema que vos deixo hoje, tenta retratar um soldado que na primeira carta que recebeu do pai, este lhe comunicava que a mulher tinha fugido com outro para o Algarve.
Desabafou dizendo: Mas que posso eu fazer?... É a mulher que eu amo, é a mulher com quem casei, é a mãe do meu filho!... E o pior é que continuo a gostar dela!...
Que posso eu fazer, meu Deus?
Também nunca encontrei a solução para o problema dele, mas nunca consegui esquecer e passei para este poema, Louco Amor, o que me pareceu ser, de facto, um louco amor.
Não sei se consegui.
Resta dizer que este poema também foi traduzido para castelhano e editado pelo Centro de Estudios Poeticos de Madrid, na antologia Eclipse de Luna.

Louco Amor

Por quem me perdi d'amores
Não vive mais em meu peito
Deixou meu coração desfeito
A sofrer terríveis dores.
Mas vejam bem, meus senhores
A grande fatalidade
Para dizer a verdade
É que queira eu ou não
Sinto no meu coração
Uma enorme saudade.

De tudo o que não vivi
De um amor que acabou
E de tudo o que ficou
Para lá de mim e de ti.
Das mágoas que eu senti
Dos beijos que nunca dei
Da má vida que passei
D'amores jamais vividos
Que por ter cinco sentidos
Nunca mais esquecerei.

José Diogo Júnior

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

O caso do "Levantamento de Rancho"

Aproveito para cumprimentar todo o pessoal nesta minha 1ª colaboração,no sentido de recordar o que se foi passando entre nós e no seguimento da sugestão do Dias em 13 de Setº.Pois,então,aí vai,contada,tim por tim, a história do famigerado "levantamento de rancho".Convém recordar que se passou nos 1ºs dias da nossa estadia no Mucondo, já sózinhos. Na dita "passagem de testemunho os da outra Compª." fizeram tudo para protelar até ao ultimo segundo. No caso dos "víveres" pela 1 hora de manhã do dia seguinte ainda se estava a pesar o feijão(letra f da relação de artigos iniciada na letra a) que estava dentro de barricas de madeira, por causa da humidade.Escusado será dizer que o feijão tinha sido, por eles, cuidadosamente escolhido, de modo a ter sido colocado no fundo o que tinha "bicho". Informo também que esta maratona terminou pelas 4 da manhã.Como na relação dos artgºs em armazém constava dobradinha desidratada, perante a minha qualidade de "maçarico" e querendo ser cumpridor das normas que tinha aprendido no meu curso, que diziam ter de se dar uma ementa de dobrada uma vez por semana, com boa fé, assim o fiz.

Como estavamos em fase de assentar arraiais,naquele dia ocupei as 1ªs horas para arrumar e começar a organizar a minha papelada, pelo que pelas 11 h da manhã fui à cozinha saber como tudo estava a decorrer.Eis senão quando o nosso cabo cozinheiro me informa que também estavam a orgaizar as suas coisas e só pouco tempo antes tinham dado conta de que o feijão,que estava de molho, tinha bichos.Naquele momento alguém terá ouvido a nossa conversa, pelo que, de imediato, a notícia propagou-se, de tal maneira, que à hora da refeição,já toda a gente no quartel, sabia do que se passava. Dada a gravidade da notícia, tomei, de imediato,a iniciativa de dar conhecimento ao nosso Comt.Compª., que também estava no seu gabinete a instalar-se.Confesso que ia à espera de ouvir os "Sinos de Mafra"mas,na realidade, disse-me: - Olhe Amaral, se voçê só tiver sido enganado no feijão temos que nos dar por satisfeitos. De imediato quis saber qual era a ementa para o jantar, pelo me instruiu no sentido de reforcá-la como compensação da fraca qualidade do almoço.O que se passou no decorrer do almoço, toda a gente, de certeza, se recorda como se fosse hoje.O Oficial Dia era o Guia, tendo sido solicitada a comparência do nosso Capitão, que ao chegar ao refeitório deu a explicação que achou por conveniente, tendo solicitado ao pessoal de serviço que lhe desse um prato e o servisse, pelo que, comeu toda a dobrada, dizendo de seguida: "Se eu comi qualquer ........também pode comer". Boa parte do pessoal comeu.Nota: vim a saber que os individuos da outra Compª, não foi só nos víveres que nos aldrabaram, informação essa, que todos estes anos depois, por acaso, no último almoço, ouvi confirmado pelo nosso Taxa Araújo.Penso ter contado o que considerei relevante. Um grande abraço do Amaral, Vagomestre.
Ainda tenho umas histórias para contar mas agora mesmo, percorrendo o papel onde assentei os tópicos das que me vieram imediatamente à memória quando dei conta deste blog, lembrei-me de uma que é tão inverosímil que quase me custa a acreditar, eu que fui seu protagonista e “vejo” na minha frente o trilho onde a historieta se passou. Passou-se quando já éramos veteranos encartados em que a mata já só representava incómodo, cansaço e noites difíceis de passar. O medo do início estava já muito esbatido. Nós éramos os reis da selva quando andávamos em sítios já por nós conhecidos. Foi o caso de uma operação qualquer, seguindo um trilho bastante bom (ser bastante bom era não ter de o abrir à catanada) em fila indiana, com boa passada e mais ou menos em silêncio. Ia no meu lugar habitual (entre o sete e o nove) e a certa altura vejo que estavam a passar uma palavra da frente para trás. Quando chegou a minha vez o soldado que seguia à minha frente e de que não lembro o nome diz-me imperturbável: - cobra à direita! E eu, virando-me para trás passei, imperturbavelmente palavra: - cobra à direita! E depois, displicentemente, como todos os que iam na operação fizeram, olhei à direita e vi, toda enrolada, uma enorme cobra mesmo à beira do trilho. Ainda hoje me espanto porque estou seguro que todos sabiam sobre cobras o mesmo que eu: que com facilidade engoliam massas vivas enormes. Seria daquela espécie a cobra que achei tanta graça conhecer na mata? Não faço a mínima ideia!

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Ontem ainda fui à memória do computador buscar uma fotografias que documentam a operação de comemoração do ano da nossa comissão para as passar para aqui mas, infelizmente, são pesadas demais e não entraram (por agora).
Esta operação teve um aparato enorme porque foi feita a nível de batalhão e consistiu essencialmente numa deslocação das companhias do batalhão para um ponto convergente situado num alto de um morro. A esse morro deveria ir ter connosco o brigadeiro da Região Militar, coisa que não sucedeu e por isso fomos mais ou menos todos nós, pertencentes ao batalhão, que participámos nas cerimónias: Uma missa campal que o nosso capelão P. Cordeiro celebrou e uma almoçarada com rancho muito melhorado. Deste almoço guardo na memória, e nas fotografias, a figura do impedido do comandante, de luva e casaco branco, a servir à mesa onde os oficiais e os furriéis se banquetearam: de um lado o comandante, o major Baptista, o capitão Taxa. Do outro, eu o Justino o Gonçalves, o Sá, o Sotto e mais uns. Creio que este acontecimento terá sido certamente original: obrigar o nosso bom capelão a ir rezar nos confins da selva, no alto de um morro!

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Como já escrevi aqui “o nosso comandante”, na altura tenente-coronel, era um herói, considerado um militar competentíssimo e uma “fera”. No meu ponto de vista não era uma fera e sim uma pessoa muito justa, com grande dignidade e com um grande sentido do dever. Por isso, nunca, creio, tive “medo” dele porque sempre o julguei altamente previsível e incapaz de uma patifaria sobre alguém apenas por gozo pessoal. Era porém um “militarão” e isso significava exigência, disciplina, cumprimento do dever mínimo coisa que ele fazia questão de frisar quando, num intervalo de um jogo de gamão que perdi, desenvolveu a teoria, referindo-se ao general Spínola, que o que ele fazia na guerra não era nada de especial porque só aceitava como oficiais os que tinham estofo de herói despachando todos os outros com castigos infamantes. O difícil dizia, era comandar com êxito tropas da cangalhota. Sempre gostei dele embora eu estivesse quase nas antípodas do “militarão”. E só não estava nas antípodas porque tinha a ideia da indispensabilidade de disciplina que procurei manter até ao último momento, estando a minha tarefa muito facilitada pelo ambiente do batalhão. Toda esta introdução para contar um episódio do meu pelotão com o comandante. Além das operações de companhia ainda participávamos em operações de batalhão. Foram várias mas lembro duas em especial: a da comemoração do ano de estadia no Mucondo, que contarei amanhã o que me lembro dela, e a operação em que o comandante se integrou no meu pelotão. Não lembro nem o nome nem as razões da operação. O que lembro é que no último minuto o comandante que assistia ao início da progressão da tropa pela mata fora, integrou-se, ele e a equipa dele, uns cinco ou seis soldados à minha frente de modo que, durante todo o tempo, o tive debaixo de olho. A certa altura, depois de horas de caminhada, quando passávamos junto a uma orla de floresta estando nós do lado de uma “lavra” (portanto mais ou menos a descoberto) soou, um tiro de canhangulo. Como manda a regra atirámo-nos todos para o chão e, estando o comandante ali mesmo, esperámos pelas ordens dele. Não houve nenhuma ordem porque o próprio pegou na G3, armou-lhe um dilagrama (o dilagrama era uma granada adaptada precisamente por ele às G3) e disparou a dita para o ponto de disparo do canhangulo. O dilagrama estoirou com um barulho enorme. Fez-se silêncio quebrado logo depois, por um chorrilho de insultos em bom português vindo do lado da mata: seus cabrões, vão para o Puto, filhos da puta etc etc ao que os nossos soldados responderam com a mesma moeda: puta é a tua mãe e a tua mulher etc etc tudo terminando numa enorme gargalhada. Eu achei a maior das graças, sobretudo o facto de nos insultarmos em português e pelo menos do nosso lado a rir. Não tenho a certeza de o comandante ter achado graça … porque ele era um militarão!

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Continuámos a apanhar mulheres e crianças e ouvindo pouquíssimos tiros e quando ouvíamos eram de canhangulo, como amanhã contarei um dos exemplos.
Um dia chegou a ordem de se fazer uma enorme operação, de nome “Nova Luz” cujo comando seria do próprio comandante-chefe de Angola, o depois célebre general Costa Gomes. A operação partia do princípio de que em toda a região dos Dembos estavam apenas assinaladas duas armas mauser e que as populações não se apresentavam porque tinham medo de serem maltratadas. Era preciso demonstrar que nós não éramos maus e a forma engendrada de o fazer foi o de distribuir rações de combate pela mata acompanhadas de camisolas de interior, hoje chamadas camisolas t-shirts, com os dizeres “Angola é Portugal”. Guardo uma dessas camisolas, embora de momento não saiba concretamente o local onde a guardei, e sempre que penso nelas dá-me uma vontade de rir enorme pelo insólito da situação, horas na mata a andar e noites com chuva, trovões e formigas assassinas para deixar num qualquer trilho umas camisolas e uns mantimentos depois de nesses mesmo trilhos e caminhos, e pouco tempo antes, termos passado a destruir lavras e a chatear o indígena. Em todo o caso foi um momento de enorme descontracção: Só duas armas em toda a região norte? Pela experiência que vivi não poderiam ser muitas mais. Antes isso, pensei.

sábado, 16 de outubro de 2010

Histórias da nossa tropa

Depois de ler os relatos do Vieira, que está um verdadeiro historiador,sou levado a contar algumas cenas. Apesar de ser considerado por todos um aramista,devo dizer que as primeiras

operações foram todas feitas por mim e por outro aramista Pina Silva e estou convicto que a

não ter acontecido a infelicidade ao Seródio( Bébé chorão)e eu teria continuado a ir a todas.

Ao não ser possivel o contacto via rádio o que fez com que o Cap. tivesse dito:- Tem a certeza

que na base estão à escuta?

Apesar de ser apelidado de merda de furriel eu respondi : SE eu estou aqui, como é que quer

que eu saiba o que se passa no quartel!

A partir daí deixei de fazer operações,o que no Mucondo eram quase bi-semanais.

Para isso também contribuio o nosso Comandante que apesar de militarão cumpria as normas

militares.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Inicialmente ir à mata, para além do enorme esforço físico, era também um susto agravado pela ideia de guerra que tinha o nosso capitão, um militar com estofo de herói, com desejo de o ser e, como já disse, um voluntarista terrível. Apesar disso em recente conversa com ele disse-me que eu gostava de fazer operações com ele. E a verdade é que achava que ele, apesar do que disse atrás sobre as suas características, sabia e gostava da profissão dele pelo que entendia que era melhor ir com ele do que comigo próprio. A primeira operação que fiz, depois da lixeira, foi com ele e lembro a espantosa estafadela de dez horas seguidas para cima e para baixo porque, tal como seria na Guiné, mal parássemos levaríamos uma fogueirada terrível. Levou algum tempo a perceber-se que apesar de estarmos numa zona considerada terrível ali o In (inimigo) não tinha poder de fogo nenhum e portanto o que se podia esperar de uma operação de visita a lavras e povoações no meio da mata era apanhar mulheres, velhos e crianças. Foi isso que se fez com bastante sucesso. Ao princípio os soldados corriam com armas e bagagens atrás do pessoal surpreendido nas lavras. Depois largavam as armas e bagagens para mais facilmente desatar na correria. Esses “apanhados” naturalmente ficavam desconfiados de nós. Eram transportados para o quartel onde começaram por comer à fartazana dos nossos mantimentos carregados de sal com consequências médicas inacreditáveis: - em dois dias estavam inchadíssimos e depois o médico tinha que lhes aplicar uma dieta terrível para corrigir o excesso de sal. Passados uns dias os apanhados eram transportados para uma sanzala que nunca visitei e daí, com o maior dos à-vontades, regressavam à mata para visitar os parentes e amigos. De todos os “apanhados” lembro a Teresa de que falei ontem; um homem velho que o capitão convenceu a voltar à mata e chamar a família dele coisa que aconteceu pela metade e, naturalmente do Marcelino, miúdo filho de um chefe vítima da guerra que inicialmente nos chamou os maiores palavrões e desconsiderou-nos tanto quanto soube. Ficou os dois anos connosco. Penso que quando deixámos Luanda o comandante inscreveu-o num colégio interno e que terá sido o herdeiro dos bens do batalhão na data da sua extinção. Lembro nitidamente quando viajámos em coluna militar do Mucondo para Luanda da cara dele que eu expiava com enorme curiosidade quando o mar, que ele pela primeira vez via, apareceu na nossa frente. Que terá sido feito deste Marcelino?

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Para além da rotina do ir à água, à lenha, a Santa Eulália a nossa grande preocupação eram as operações que se sucederam a um ritmo regular. Raramente estávamos descansados. No final, feita a contabilidade, creio que eu participei em cerca de trinta e seis operações. Dormi no mato quase cento e quarenta noites das quais lembro duas em especial. Uma em que choveu como só em África chove, trovejou como também só em África acontece e eu, refugiado numa tenda manhosa, apesar das condições meteorológicas completamente desgraçadas tive que, à pressa, sair do abrigo precário e despir-me totalmente para dar cabo das terríveis enormes formigas que me mordiam em filas sucessivas. Conseguido isso nunca mais tive direito à bisnaga de leite condensado da ração de combate porque a destinava às formigas. Antes de adormecer na mata, a uma distância razoável de mim, despejava a bisnaga que alimentaria as formigas, dispensando as minhas pernas e partes íntimas de as alimentar! A segunda noite inesquecível tem a ver com uma “apanhada”. Sobre os apanhados escreverei noutro post mas aqui lembro que numa qualquer operação apanhámos à mão uma professora de português da escola da mata, chamada Teresa. Tínhamos também feito a selvajaria de destruir as lavras do ponto onde ela foi apanhada. Chorou toda a noite e lembro a enorme vergonha que senti quando sendo lhe dito que nada lhe aconteceria ela respondeu com enorme dignidade, e com grande beleza, que nós éramos uns selvagens que destruíamos as lavras que dariam de comer às pessoas etc. etc
Quando passámos para Luanda, como batalhão de intervenção às ordens do comando chefe, naturalmente não achámos graça nenhuma porque embora nos intervalos de guerra estivéssemos aquartelados no Grafanil, pertíssimo de Luanda naquela altura e hoje no meio da cidade, era suposto que quando fizéssemos guerra esta seria mais à séria do que tinha sido no Mucondo. Foi assim que a notícia de irmos fazer uma operação com os mauzões dos comandos num ponto do Norte de Angola não foi nada agradável de receber. O plano era nós sermos o cerco e eles os atacantes e por isso nós seríamos colocados de helicóptero Puma (que transportava mais de vinte militares) num ponto a novecentos metros de altura. Para o efeito o meu pelotão foi reforçado com nove soldados oriundos dos flechas, coisa que me deu uma enorme satisfação porque os flechas tinham fama de serem óptimos guerreiros e eu pensei que isso era uma protecção adicional para a enorme guerra que se aproximava. O chefe dos flechas era um tal Lourenço, creio que Cabinda mas não tenho a certeza. No dia aprazado lá fomos para o aeroporto militar e embarcámos no enorme Puma que pela primeira vez todos nós experimentávamos. O Lourenço ficou sentado ao meu lado esquerdo em frente à porta lateral. Fechada esta as enormes pás do monstro puseram-se em funcionamento e quando no meio de um barulhão enorme o passarão começa a levantar o Lourenço encostou a cabeça dele ao meu ombro e, com voz assustada diz :– ai meu alferes o que vai ser de nós! Imaginem o estado de espírito em que fiquei pensando: e são estes heróis que nos vão dar segurança? Chegados ao ponto de desembarque lembro ainda que o piloto, que experimentava ainda aquele tipo de helicópteros, queria por força que nós nos atirássemos para o chão de uma altura incrível, coisa que não sucedeu. Apenas quando poisaram mesmo é que desembarcámos. E lá ficámos, no tal morro a novecentos metros, sem que nada se tivesse passado até nos virem buscar uns dias depois e beneficiando de uma absolutamente espectacular paisagem de pôr e nascer de sol, que ainda hoje tenho na retina, e que penso o Gonçalves registou com a sua excelente máquina.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

A primeira vez que andámos de helicóptero creio que foi na sequência de um rapto de crianças que desencadeou uma enorme operação, logo no princípio da nossa comissão. Fomos então a uma base chamada de Tanzânia onde, evidentemente, com todo o barulho que envolvia as deslocações aéreas não se encontrou absolutamente nada, que eu me lembre. Já não sei quantas vezes utilizámos os helicópteros mas lembro duas ou três histórias a eles associados. A primeira e a segunda história tem a ver com o meu amigo e vizinho de rua Eduardo Telhada que depois foi comandante da TAP de onde está reformado. Para meu enorme espanto um dos pilotos do helicóptero foi precisamente esse meu amigo que da primeira ou segunda vez que nos levou ao mato fez primeiro um “raid” turístico sobre o rio Dange, à “Vietnam”, seguindo o curso do rio e mesmo em cima dele, num deslumbramento paisagístico que quase fez esquecer que dentro de momentos estaríamos a pé, no meio da selva, com chuva e, sobretudo apreensivos, que é a palavra que eu uso para descrever a enorme chatice que eram as operações, dormindo na mata e ansiando pelo último dia de regresso ao Mucondo. Pouco tempo depois desta operação, inesperadamente, um helicóptero sobrevoou o Mucondo aterrando. Dele saiu o Eduardo Telhada que desviando a rota foi ao Mucondo tomar o pequeno-almoço e dizer-me que tinha estado com o meu irmão em Luanda. Sobre a última vez que voei com ele, ainda no mês passado falámos nisso, a rir à gargalhada. Tratava-se de uma operação, como a maioria delas, em que entrávamos num ponto e saíamos três dias a pé à frente. O Eduardo Telhada sabia que era ele, ou o agrupamento dele, que nos recolheria três dias depois e o sítio onde essa operação seria realizada. De modo que, com a amizade de um vizinho de toda a nossa então curta vida, pôs-nos imediatamente no destino dizendo: - Fica naquele morro, não te mexas, que no sábado venho buscar-te, como foi. E ali ficámos três dias, ficcionando as posições de guerra pelo rádio. Não foi a única vez que ficcionámos a guerra e sempre me espantou o silêncio, indispensável sobre pena de levar uma enorme “porrada”, de todos os participantes na ficção a quem era preciso ensinar que nos tínhamos estafado três dias e não estado parados a vigiar possíveis atacantes de uma trincheira no alto de um morro. Mais à frente contarei um ou dois desses episódios. Amanhã contarei a principal operação, a partir de Luanda, nos helicópteros Puma.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Quando falei dos meios de transporte apenas escrevi sobre os meios comuns mas o nosso batalhão usou ainda, com alguma frequência, meios aéreos: helicópteros, o Nord Atlas, o DO (Dornier), o boing 707 que nos trouxe de volta e o avião do dono da fazenda Caiado creio que um Peper, ou coisa que o valha. E é por esse que vou começar a contar algumas histórias em que os pássaros tiveram interferência.
A fazenda Caiado, não ficava muito perto de nós, como a Fazenda Bombo que tinha como capataz o sr. Ramalho ou a fazenda Sande cujo dono, sr. Rezende, prefigurava o tipo do português de África: mau aluno em Portugal, caçador em África com descendência da dona da fazenda, nativa de posses, insinuante, boa pessoa e, na altura que o conheci, muito mais angolano do que português (o que lhe terá acontecido?).
Não lembro o nome do homem da fazenda Caiado, mas no seguimento de um ataque que lá houve, único aliás durante todo o tempo da nossa comissão, o Chaves, do segundo pelotão, fez lá uma operação muito tensa porque foi quase no início da nossa estadia. Já não sei porquê, passado pouco tempo o avião pequenino de dois lugares aterrou na nossa pista, junto ao cemitério. O dono do avião convidou o capitão para voar até ao Caiado e este, que era muito voluntarista, virou-se para mim e disse: venha comigo, vamos ao Caiado. O dono protestou por causa do peso mas foi incapaz de deter a vontade do capitão. Eu fiquei momentaneamente contente. Sempre gostei de voar. O contentamento porém foi-se quando aterrando no Caiado, só no último minuto nos safámos de dar cabo de um bode que pastava na pista, bode esse que certamente teria dado cabo de nós. E muito mais apreensivo fiquei quando, de regresso, o dono-piloto, pôs o avião fora da pista, acelerou ao máximo com o avião travado e, largando-o, acompanhou com o corpo o andamento do avião, para lhe facilitar a tomada de velocidade; E terá sido o balanço do corpo que fez o desgraçado do avião rasar as árvores do fim da pista num esforço colossal para levantar voo! Foi um susto!

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

A palavra “polícia” alertou a minha memória para um outro episódio de natureza diferente. Quem fez o serviço militar sabe que a disciplina é imposta na base da capacidade de infligir um castigo ou, na gíria “dar uma porrada”. As “porradas” variavam de acordo com o estatuto do “castigador”. Um alferes e um furriel não passavam primeiro dos gritos e das ameaças, depois das”flexões”, em menor ou menor quantidade, pelas “carecadas” e, por último, em última instância, a capacidade de participar do subalterno. O comandante e o capitão tinham fama de disparar à primeira mas, tudo visto, foi mais a garganta do que o que se passou efectivamente na prática. Em todo o caso lembro de um dia estar em Stª Eulália e, por mero acaso, despedir-me da vítima mais grave do Regimento de Disciplina Militar. Um capitão miliciano do nosso batalhão, de que felizmente nem o nome lembro, que, com lágrimas nos olhos me contou que o nosso comandante lhe tinha aplicado a pena máxima de prisão porque ele se tinha recusado a sair para o mato com a companhia dele. E lembro na altura pensar quão desgraçado era aquele infeliz que, com filhos, vida profissional estabilizada, com muito mais de trinta anos, estava ali a ter que cumprir uma missão para a qual nem para o mínimo conseguia reunir força anímica.
Mas a palavra “polícia” tem a ver com outra história.
Um furriel da nossa companhia participou de um soldado. Nestes casos a participação era instruída por um “oficial da polícia judiciária militar” e eu fui, sem a menor ideia da tarefa a desempenhar, nomeado para essa função. Naturalmente havia duas “ajudas” fundamentais: a sabedoria do sargento do quadro que me deu todas as indicações a seguir e o manual de procedimentos. Iniciei o processo ouvindo as partes e as testemunhas, como mandavam as regras, e rapidamente concluí que quem merecia levar a “porrada” era o furriel e não o soldado. Tirada essa conclusão achei que era demais dar-lhe andamento porque resultaria numa desproporção nas consequências: se o soldado fosse punido seria uma punição pequeníssima mas se fosse o furriel outro galo cantaria. Assim o processo seguiu para o comandante sem conclusão e sem assinatura. Quinze dias depois fui chamado a Zemba, sede do batalhão, e lá ouvi uma enorme arenga do comandante sobre não ter cumprido a minha função porque o processo não estava concluído. Respondi (e marquei no meu diário: fiquei furioso com o”cabrão” do comandante) que achava demais concluir imediatamente o processo dado a inesperada conclusão do mesmo. Fui despedido com maus modos e voltei ao Mucondo sem mais notícias. Uns tempos depois o capitão disse-me que o comandante tinha mandado retirar a participação, o que me encheu de satisfação.
Foi a única experiência que tive de “agente da polícia judiciária militar” mas ficou-me na memória tal como está descrita. Terá sido assim? Não posso confirmar com os intervenientes porque também não lembro o nome deles.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

O “post” do Gomes, a quem mando um abraço, fez-me lembrar as minhas memórias sobre o episódio da Polícia Militar.
A nossa comissão foi dividida em duas partes, para quem não saiba: um ano no Mucondo e o resto na intervenção a partir do Grafanil em Luanda. Em Luanda estacionavam diversas forças, entre elas a Polícia Militar e os Pára-quedistas, ambas tropas de elite e, por essa razão, rivais. Um dia pegaram-se e estupidamente dispararam uns contra os outros, havendo baixas por causa dessa espantosa estupidez. O castigo foi serem as duas deslocadas para fora de Luanda, passando a tropa comum de guarnição. Era, porém, preciso ter Polícia Militar em Luanda. Nós estávamos no Grafanil. O nosso batalhão por ser comandado por quem era, tinha fama de eficiência e de disciplina. Foi assim que, de um dia para o outro, passámos a “Chuis” militares. A tarefa era guarnecer os creio que quinze postes de observação da cerca de Luanda, patrulhar esses postes e patrulhar a estação de caminho de ferro. E é assim que retenho nitidamente na memória estar na estação, à hora do embarque de uma multidão para Malange, ostentando na manga as letras garrafais de PM (Polícia Militar) e, do alto dos meus metro e sessenta e seis centímetros de altura, muito pouco ultrapassados por alguns dos soldados que me acompanhavam, pensar, melancolicamente, primeiro na figura ridícula que fazíamos e, segundo, se porventura se passasse alguma coisa, nós, que não tínhamos experiência absolutamente nenhuma de ordem pública, e que não nos impúnhamos pela presença corpulenta, o que faríamos?

A saudade

Quando da nossa estadia em Angola, uma das coisas com que nos debatemos, foi a saudade. Saudade da família, da namorada, dos amigos e da nossa terra, que por mais pequenina que seja é sempre única,pois é nessa terra que estão os carinhos, os sonhos,a alegria da nossa meninice e da nossa juventude etc. e tal.
No meu caso, depois de regressar de Angola emigrei para a Alemanha e neste particular nada mudou. A saudade tem sido uma companheira permanente, a prová-lo este meu poema, em décimas glosadas.
Espero que gostem.

Ao Fundo no Horizonte

Mote

Ao fundo no horizonte
Só um sobreiro pasmado
Nem um ruído de fonte
Nem um chocalho de gado

Francisco Bugalho em figuras e costumes do Alentejo. O Ganhão

Glosa

Ao recordar a criança
Que fui em tempos passados
É não deixar olvidados
Carinhos e esperança.
Pois mantenho na lembrança
A água pura da fonte
O rosmanhinho do monte
O sol e a lua cheia
Que dão luz à minha aldeia
Ao fundo no horizonte.

O cantar dos rouxinóis
O voar das andorinhas
São como saudades minhas
Num campo de girassóis.
São luz de muitos faróis
Rumo do tempo passado
Que eu guardo a meu lado
Como troféu da saudade.
A olhar minha "cidade"
Só um sobreiro pasmado.

No campo do pensamento
Onde a distância falece
Este meu amor parece
Talhado p'ró casamento.
Pois me reserva o assento
Em sonhos aqui defronte
Com o rosmanhinho do monte
Perfumado e verdinho.
No silêncio do caminho
Nem um ruído de fonte.

Por veredas e atalhos
Meu pensamento passeia
Pelas ruas da aldeia
Por ex-locais de trabalho.
Aqui choro, ali me ralho
Além me vejo apoucado
Mas sinto em todo o lado
Silencioso desejo.
Nem sequer o som dum beijo
Nem um chocalho de gado.

José Diogo Júnior

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Histórias da nossa Tropa

Quando fomos substituir a P. M. (Polícia Militar), fui nomeado para sargento da guarda no QG (Quartel General) de Luanda.
Aí chegados, fui informado que o serviço seria feito juntamente com tropas do RI20. Se eu não tinha rotina daquele serviço nem grandes aptidões militares aquela situação piorou ao apresentar as tropas da guarda: enquanto uns estavam em ombro arma outros já apresentavam arma outros nem uma coisa nem outra.
Diz então o Oficial:
- Tão maçaricos e já esqueceram como se faz ordem unida...
Mandou-me descansar as tropas, e ordenou-me que fosse ao seu gabinete.
- Ouça! Quanto tempo tem de comissão?
Respondi:
- 1 mês e meio, mas da 2ª comissão porque a 1ªjá acabou.
Foi quanto bastou para acalmar a fera . Por fim até mostrou a revolta contra o sistema, que permitia pô-lo de serviço enquanto ele aguardava coluna para a unidade vindo de licença da Metropole.
A Companhia estava bem servida de “ meios auto”. Que me lembre haveria uns quatro ou cinco unimogs a gasóleo, um ou dois a gasolina, uma berliet e uma GMC, velha que se farta. Todas as semanas era preciso executar duas tarefas rotineiras: ir a Santa Eulália, sede do sector, buscar correio e os mantimentos, e ir à lenha. Os pelotões revezavam-se nestes dois trabalhos sendo que ir a Santa Eulália significava “comer” sessenta kilómetros de pó, aos pulos, pela picada fora ou, no tempo de chuvas, ultrapassar as poças e os buracos deixados pela passagem anterior. A organização da coluna era semelhante à das colunas a pé: as secções alternavam nos carros da frente e de trás. Nunca saíamos com menos de quatro unimogs, a mais das vezes cinco. Viajei sempre no mesmo lugar: no terceiro unimog, atrás do condutor, com o transmissões, o enfermeiro, o pomposo guarda-costas e mais alguns das secções. Apenas uma vez apanhámos um enorme susto, quando num percurso que não recordo entre que pontos seriam mas que não era um dos habituais, o unimog que seguia na minha frente, sem o vermos no meio de uma enorme poeirada, deixou de a fazer porque se despistou atirando com todos os seus ocupantes para o cafezal. Felizmente apenas houve um desgraçado que se magoou num braço. Outra situação interessantíssima nas colunas foi verificar que há sempre gente desenrascada com soluções para tudo: Ficámos várias vezes atascados ou impossibilitados de andar para a frente por qualquer razão (um furo num pneu que prolongou a nossa viagem para mais umas seis horas ou uma enorme árvore caída no meio da picada). O meu método foi sempre o mesmo: - Ver como as ideias nascem para solucionar o problema. Dei-me sempre bem. E lembro-me de ficar espantadíssimo com a capacidade de desenrasca do pessoal atascado que, com piada aqui, palavrão acolá, muita risada conseguiram sempre solucionar a pane, tirar o enorme tronco, fazer com que a pesadíssima berliet ultrapassasse o buraco de lama onde se tinha atascado. Tenho pena de não lembrar o nome de nenhum dos “artistas” porque, naturalmente eram quase sempre os mesmos que se ocupavam destas tarefas. Em todo o caso muito os admirei!

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Na prática o terceiro pelotão embora com três secções, funcionou, tanto quanto me possa lembrar, apenas na base da primeira e segunda secção, comandadas pelo Justino e pelo Gonçalves, funcionando a terceira secção como reforço das duas primeiras. Duas funções principais de rotina que se estabeleceram logo de início só acabariam no fim da nossa comissão: – a progressão a pé e em coluna. A pé, pela mata fora, o Justino, ou o Gonçalves, armados de bússola na mão e entre o terceiro e o quarto lugar, mais ou menos, mantinham o Norte, enquanto o pessoal das respectivas secções se revezavam na catana, abrindo caminho. Contando sete a nove nomes integrava-me eu na coluna apeada, com o enfermeiro, o transmissões e o pomposamente chamado guarda-costas. A minha função de rotina era a de, com o mapa na mão, tentar manter-me informado da posição em que nos encontrávamos (não existia GPS!) para, mais ou menos hora a hora, transmitir para o comando (Leão, Leão, as nossas coordenadas são trálá, trálálá). No meio da mata só era possível saber a posição na condição de o Norte (ou Sul fosse qual fosse a direcção estabelecida) ser mantido e se eu não me enganasse na contagem das linhas de água que íamos atravessando, quando não as seguíamos. Um dia, ao terceiro e último dia de uma operação puxadíssima e após mais de dez horas de caminhada pela densa mata, subindo e descendo, o Justino chegou ao pé de mim e disse-me que estava tudo estafado e que era preferível dormir ali mesmo do que avançar até à picada onde os unimogs nos esperavam. Pela minha contagem de linhas de água estaríamos a uns quinhentos metros da tal picada. Mas ter a certeza absoluta? E face ao evidente estafanço da tropa como tirá-la do chão onde tínhamos momentaneamente parado? De modo que lá se ligou ao “Leão, Leão: pede-se autorização para pernoitar mais uma noite. Resposta: diga onde se encontra. Coordenadas tal e tal. Resposta: Avance imediatamente para a picada. Como se atreve a fazer tal pedido? Não pude explicar que embora na minha conta fossem quinhentos metros, sabia lá se não seriam três kilómetros. Felizmente não eram quinhentos metros: os unimogs estavam a uns duzentos metros, do outro lado da base do morro onde tínhamos parado!
A lição que tirei é que há alturas em que a nossa autoridade se esgota e, sob pena de uma revolta, precisa de ser apoiada por uma força superior.
Amanhã ou depois escrevo sobre a progressão em coluna.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Os bons momentos

                                                                   Mucondo

Nem sempre foram maus momentos, também havia momentos de lazer e de divertimento, como esta fotografia documenta.
Aqui um jogo de futebol de seis com a particularidade de nele ter participado o nosso comandante de companhia, então capitão Taxa Araújo.
Em pé da esquerda para a direita, cap. Taxa Araújo, fur. Pinho e Pereira.
À frente, Sebastião, Júnior e Pereira ?" Piruças".
Este jogo foi com o quarto pelotão.

domingo, 3 de outubro de 2010

CCav 2692 - 3º Pelotão

Vou aproveitar aqui um pequeno intervalo de edição de mensagens para publicar, evocando as pessoas, uma fotografia que me foi gentilmente cedida pelo Simões (que aparece na dita), na qual ficou registado o 3º Pelotão da Companhia de Cavalaria 2692.

Felizmente que começam a surgir mensagens a um ritmo que não esperava.

Felizmente que há protagonistas que viveram a guerra e facultam fotos (ou documentos) que permitem - e assim continuarão a permitir - dessa forma perpetuar tão marcante época.

Felizmente que começam a ser publicados episódios que, sob formas simples e frias como são as verdades, são autênticos retratos da complexidade que foi a guerra, tão autênticos porquanto editados por quem os viveu.

Aqui fica, para a posteridade, a foto tirada no Mucondo (penso que no início da nossa "estadia") com os que iriam viver tamanha aventura. Da esquerda para a direita e da primeira fila para a terceira aqui ficam os nomes:
1ª fila: Furriel Justino, Lucas, Gorgueira, Fidalgo, Alferes Vieira, Grulha, Mendes, , Vieira, Marques;
2ª fila: Furriel Gonçalves, Batista, Gonçalves, Baía, Mendes, Batista, Gato, Tavares, Simões;
3ª fila: Furriel Sá, Costa, Ferrador, Santo, Farinha, Sobral, Nogueira, Pereira, Andrade.

Ao ver esta foto recordo a dureza da guerra, o odor da morte, o sabor da sede, o frémito do medo (a que muitas vezes hoje chamamos adrenalina), o sentido do frio e do calor extremos, mas também os trilhos percorridos abertos ou abertos à catanada, que uniu tanta gente que apenas se conhecera poucos meses antes.

Nunca me esquecerei de cada um deles (destes que aparecem na foto e dos outros). E, por muita discordância que nos separasse, também não posso deixar de evocar os comandantes, o da Companhia, então Capitão Taxa Araújo e do Batalhão 2909, então Tenente-Coronel Duarte Silva.
Foram tempos duros, quer do lado das tropas portuguesas quer do lado dos que pegavam em armas lutando pelos seus ideais de liberdade.

Mas foram também - o que ironicamente hoje tanto falta - tempos de solidariedade entre pessoas que, de um lado ou do outro, penetravam no maravilhoso e duro mundo da selva africana, tão belo quanto mortífero.

Por aqui me fico, por hoje. Recordo todos com muita amizade e saudade de voltar a ver os que nunca mais vi.

António Gonçalves

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Talvez, antes de continuar a contar histórias da tropa que a minha memória vai puxando, e actualizando, para a actualidade, seja útil enquadrar as ditas histórias no que eu pensava e com o que é que eu estava influenciado quanto às minhas funções.
Desde pequeno ouvi o meu pai recordar, com o seu amigo e meu padrinho José Blanc de Portugal, a sua passagem militar por um quartel no Algarve em que este último teria tentado uma experiência bondosa de abandalhamento do pelotão que comandava. Ambos riam à gargalhada com os resultados alcançados - a mais completa barafunda - exigindo depois um reforço terrível de “porradas” para repor “a ordem”.
A segunda historieta passou-se já em Estremoz imediatamente antes da formação do nosso Batalhão. Estando lá colocado e sendo “aspirante” ou “suspirante” a “oficial miliciano” fui nomeado chefe da secção de material de guerra. Tinha vinte e um anos; nunca tinha comandado coisa nenhuma; não sabia absolutamente nada de “material de guerra” e tinha como colegas da secção um sargento sabichão do “quadro” e uma praça com anos de experiência. Logo nos primeiros dias o tal sargento pôs-me um montão de papéis na frente dizendo-me que precisavam da assinatura do comandante do quartel ten. cor. Fontoura. Pensei, naturalmente, que o dito comandante sabia que eu nada sabia daquilo e, sem sequer ler os ditos papéis, dirigi-me ao seu gabinete. Foi um enorme enxovalho porque a primeira pergunta sobre o papel que lhe passei para a mão foi: o que é que quer este gajo neste papel? Fiquei em completo silêncio e fui corrido do gabinete com uma série de advertências: que falta de sentido das responsabilidades! Que falta de respeito para com os “superiores”! Que incompetência descarada etc etc. E nem a minha tímida resposta: mas o sargento sabe tudo! Foi ouvida: – você é o chefe. Bem ou mal, parece que mal, você é que tem a responsabilidade.
Nunca mais, julgo, esqueci a lição de ter de entender a essência das responsabilidades que se têm.
A terceira condicionante foi as palavras do meu pai, dois meses depois repetidas em carta para o Mucondo, quando, muito comovido, me abraçou no cais de Alcântara, na despedida, imediatamente antes de embarcarmos no Niassa: – Tem cuidado, não te armes em herói, mas cumpre o teu dever.
O meu dever ficou assim marcado: – Não deixar abandalhar o pelotão; ir e voltar com todos os homens, isto é, não deixar que houvesse qualquer responsabilidade minha na morte de alguém do meu pelotão e, naturalmente, não me “armar em herói” conselho que evidentemente era dispensável mas que eu entendi como não deixar que o pelotão tivesse intenções heróicas. Guiei-me sempre por estes objectivos e por isso escrevi no tal diário, no final da comissão, que tinha feito o que o meu pai me aconselhara. Com muita sorte, porque o nosso batalhão foi muito bem comandado e disso dependia, em primeiro lugar, a essência da coisa.