domingo, 5 de abril de 2020


PARTE 1

DO LIVRO “CAPITÃES DO VENTO”

Mucondo
(Excerto)


210º Dia
                                 
…- E isto dispara...?
Atirei eu, procurando disfarçar a tremideira miudinha que se me vinha subindo pelas pernas acima, mas também preocupado com o estado lastimoso da G3, também ela entranhada de poeira por todos os lados, quando eu estava habituado a vê-la luzidia e pronta para uma exposição de armas de guerra em tempo de paz…
- Bem, se formos atacados logo vês se dispara ou não...

Cinco dias depois da nossa chegada, aeroporto de Luanda outra vez. Sete horas da manhã com armas e bagagem.
Bagagem, um saco de lona militarizado e uma pequena mala civil.
Armas; vinte e dois anos de esperança e uma enorme vontade de vencer para voltar e viver o que prometia a vida.
Destino, Mucondo, Dembos no norte de Angola.
Transporte, avião Nord Atlas, utilizado para carga e transporte de pessoal militar, outrora especializado no lançamento de pára-quedistas.
Cheguei cedo, não fosse perder o meu primeiro transporte para a guerra ou chegar atrasado ao primeiro encontro com aquele novo Adamastor longamente prometido.
Primeiro fizeram entrar a carga até chegar ao tecto do avião e só depois os militares que se sentavam lado a lado, numa linha única junto à janela e de costas para esta, ao longo de todo o comprimento do avião.
Para quem vinha de mais de oito horas de Boeing foi uma mudança demasiado brusca. O espaço era demasiado exíguo. Os joelhos encostavam-se à carga que ameaçava tombar caso o avião se inclinasse demasiado para o nosso lado, não obstante as tiras de lona que a abraçavam e acondicionavam. Alguém entreabria a porta do tradicional humor nacional, procurando atenuar a tensão que normalmente antecedia o colocar no ar daquele monstro, com mais de cinco toneladas de carga, só possível numa pista longa como era aquela do aeroporto internacional de Luanda.
- Então as hospedeiras hoje não vêm?
Ao que uma voz grossa, vincada por longas noites de nicotina, e humor há muito empedernido, retorquia.
- Não! Hoje é o nosso Sargento que te faz a cama e ajeita a almofada...
O ruído dos motores de hélice era ensurdecedor, tornando quase impossível falar com o passageiro do lado. Era um barulho metálico de esforço nos limites das centenas de cavalos que os moviam. O avião já corre pesadamente pela pista fora, comendo todos os metros de asfalto disponíveis, em busca de um último empurrão que nos atirasse para o ar. Ouvia-se um ranger metálico saído de vários pontos, sem se distinguir ao certo se era a carga se a própria estrutura do avião. Optávamos positivamente pela primeira hipótese. A viagem ia durar pouco mais de uma hora até ao primeiro destino, Santa Eulália, donde eu seguiria para o Mucondo. O avião rumava depois para outros destinos, distribuindo alimentos frescos e víveres de primeira necessidade por vários aquartelamentos do norte de Angola.
Ao meu lado sentava-se um jovem Alferes mais velho do que eu, portanto um velhinho (gíria militar utilizada para distinguir os que já tinham algum tempo de guerra, distinguindo-se assim dos maçaricos) e aparentemente pouco dado a conversas.
Já com uma boa meia hora de viagem, o meu companheiro continuava a ler uma revista de actualidades e não parecia manifestar grande vontade para dialogar. É certo que o ruído não convidava a grandes trocas de impressões, mas sempre seria uma boa forma de passar o tempo.
Mexi-me e remexi-me várias vezes no meu lugar procurando, sem êxito, chamar à atenção do meu companheiro de viagem. Era óbvio que o nervoso ali era eu. Numa volta de página, e antes que se embrenhasse de novo na leitura, disparei à sorte:
- Você vai ficar aqui em Stª. Eulália?
- Sim, saio aqui! Depois sigo para o Mucondo na coluna da Companhia que vem buscar os géneros.
Mucondo? Não devo ter conseguido disfarçar o meu repentino entusiasmo quando ouvi a palavra Mucondo. Agitei-me no lugar e voltei-me para o companheiro Alferes, como querendo dizer que aquela presa eu não iria largar mais.
- Olha, tem piada que eu também... saltei eu como se tivesse encontrado um ancoradouro perdido no meio de uma longa tempestade. O nosso Alferes, que se preparava para voltar à leitura e manifestava pouca disposição para dar continuidade àquela conversa com um maçarico de farda novinha em folha e galões reluzentes estreados cinco dias antes, interessa-se repentinamente pela conversa fechando a revista, marcando com um dedo apertado pelos outros dois a página em que ficara.
- Para o Mucondo? Mas o que é que vais fazer para o Mucondo? Aconteceu lá alguma coisa? Morreu alguém?
A guerra era assim. Alguém que chegava de novo era frequentemente mau sinal. Ou vinha substituir uma baixa, ou alguém castigado que era enviado para um buraco maior que aquele em que se encontrava antes.
O nosso Alferes vinha de gozar umas férias em Luanda, pelo que não tinha notícias do Mucondo havia dias. Ficou tão intrigado quanto preocupado.
- Espero que não. Vou para lá fazer um curso de Comandante de Companhia, mas também sei poucos pormenores. Está tudo escrito aqui num envelope secreto que trago para o Capitão lá da Companhia, respondi eu preparando-me para não largar mais aquela fonte de notícias e mais que um amparo para o meu estatuto de náufrago daquele oceano novo e incerto em que me preparava para mergulhar.
O meu companheiro de viagem, e pelos vistos nos próximos quatro meses de guerra (tempo que se previa ir durar o estágio) queria saber tudo daquela novidade que ninguém conhecia e vai de me metralhar com mil e uma perguntas sobre aquela história do curso de Comandantes de Companhia, embora sem desmarcar a página da revista que permanecia entre dedos. Prestadas todas as informações de que dispunha, tratei de cobrar a minha parte. Embora eu tivesse prometido a mim mesmo que não voltaria a perguntar o que quer que fosse sobre a guerra, aquilo ali era diferente. Era conhecimento de causa. Eram notícias directas da fonte das minhas preocupações. Como era a guerra, se havia muita porrada, como eram as condições, enfim, acho que não parei de metralhar o camarada enquanto não saciei a minha sede imensa de conhecer o que me esperava. As respostas sossegaram-me de certa forma, mas não por muito tempo. Aquele era uma dos nossos conhecidos pintores de aguarela suave. A Companhia estava no local havia seis meses, não tinham baixas, embora tivessem já ocorrido umas escaramuças sem grandes consequências. Não entrou em grandes pormenores, nem manifestou muita vontade em falar da guerra, por mais que a minha ansiedade a isso se dispusesse. Acabou mesmo por regressar à leitura da revista quando o comecei a massacrar com questões miudinhas de maçarico acagaçado. Viria a revelar-se no futuro um rapaz bastante reservado e introvertido, o camarada Alferes Santos de seu nome.
O Nord Atlas inicia a descida para Stª Eulália. Voávamos relativamente alto, porque não seria a primeira vez que apareciam furos de balas na fuselagem do avião. A paisagem muito verde que sobrevoávamos desde Luanda é abruptamente interrompida por uma clareira enorme de terra ruiva, matizada aqui e ali por tons claros que contrastavam com outros mais escuros. Aquela enorme aberta desbastada na mata estava salpicada de casario coberto a chapa, que se presumia ser de zinco, embora a sua cor natural acinzentada se tivesse suavemente harmonizado com o tom ruivo da paisagem. Pela disposição das construções, percebe-se não ter havido ali grande preocupação arquitectónica, transparecendo que tudo fora feito muito à pressa e sem grandes perspectivas de serventia a longo prazo. Nada de construções definitivas. Tudo parecia que tinha ido sendo acrescentado à medida das necessidades. Espaço para esse efeito era o que não faltava. Tratava-se de instalações militares, essencialmente de protecção e apoio à pista, um elemento estratégico de primordial importância no apoio logístico aos aquartelamentos da zona. À entrada do aquartelamento vêem-se sete ou oito viaturas alinhadas, coloridas no mesmo tom de pó, tornando-se evidente que a zona é varrida com frequência por ventos que o levantam no ar, enxameando tudo da mesma cor. Deduzo que se trata de um depósito de ferro velho, onde se vão despejando exaustas as peças da guerra que já cumpriram a sua missão.
Faço a minha segunda aterragem na perfeição, se bem que o ruído produzido pelo trem de aterragem sobre a pista de terra batida nos faça momentaneamente crer que algo se vai partir a qualquer momento. O ruído é enorme e tudo treme; carga, estrutura e passageiros. O avião faz levantar uma enorme nuvem de poeira, ficando em parte explicada a cor ruiva que se espalha por toda aquela região.
Imobilizado o Nord Atlas, ponho o meu primeiro pé na guerra. A recepção não podia ser melhor. Havia agitação na pista junto a uma Dornier (DO) pequeno avião monomotor utilizado para múltiplos fins militares. Procedia-se a uma evacuação. Um jovem soldado pisara uma mina horas antes, ficando sem uma perna. O Alferes Santos reconhece o grupo de militares que apoia a evacuação e precipita-se na sua direcção. Volta momentos depois já com a DO a fazer-se apressadamente à pista.
- Era o Guia, um militar da nossa Companhia. Balbucia meio acabrunhado.
- Do Mucondo? Indaguei eu um tanto incrédulo e na esperança de ter ouvido mal ou haver por ali alguma confusão.
O nosso amigo percebeu a minha agitação.
- Sim, mas não penses que te quis enganar quando disse há pouco que não havia grandes problemas na zona. Esta é a nossa primeira baixa. Só que coincidiu com a tua chegada.
Fiz por acreditar. Ou melhor; eu queria mesmo era acreditar que o Santos não me tinha ocultado a verdadeira situação na zona, só para não me desanimar.
- Bem, temos que ir embora. São quase horas do almoço e as viaturas são necessárias para irem levar pessoal para a mata.
- Sim, mas e quando é que chegam as viaturas? Perguntei eu ainda um pouco confuso com o ambiente gerado pelos acontecimentos à chegada.
- Então não viste as viaturas estacionadas ali à entrada, quando vínhamos no avião?
- Não, eu vi foi algo parecido com um cemitério de viaturas, embora de facto estivessem muito alinhadinhas.
- Pois, chama-lhes o que quiseres, mas é naquelas que vais para o Mucondo.
O dia já estava quente e radioso. O costume em África. Mas os acontecimentos sucediam-se numa vertigem e complexidade demasiadas para que eu pudesse usufruir de tanta luminosidade e tanta beleza natural. Os aromas sim, começavam a inebriar-me os sentidos, confundindo-os ao mesmo tempo.
Meio tonto, peguei na minha tralha e dirigi-me para aquele recentíssimo ex-cemitério de viaturas militares, na crença de um novo milagre das rosas que transformasse aquilo que vi lá de cima num transporte seguro que me levasse ao meu último destino daquela longa viagem. De facto, as viaturas (Unimogs; pequenos carros de rodado alto que transportavam nove a dez militares sentados costas com costas em bancos de madeira dispostos longitudinalmente) estavam todas em perfeitas condições. O que tinham era uma camada de pó de tal ordem, que se tornava praticamente impossível descobrir a sua cor militar original verde acinzentada. Não se tratava ali de falta de cuidado no tratamento das viaturas. Os caminhos empoeirados (as picadas) eram autênticos trilhos de solo lunar, fazendo praticamente perder de vista a viatura da frente ou de trás, logo que a marcha se iniciava. A viatura que seguia à frente (nas colunas que todos os dias se movimentavam em múltiplas actividades operacionais e outras) tinha sempre uma contradição difícil para resolver, razão pela qual poucos reivindicavam essa posição, aparentemente mais cómoda e limpa. Era de facto a única que não apanhava com aquele pó insuportável, mas era também aquela que maior probabilidade tinha de pisar uma mina. Ao princípio nunca havia voluntários. O sistema era rotativo. Depois, à medida que o tempo foi passando, o medo de um estouro que os atirasse a cinco ou dez metros de altura era rendido pelo cansaço de comer pó vermelho quilómetros a fio e o lugar da frente tinha que ser rateado porque quase todos eram voluntários.
Os militares do Mucondo que constituíam a coluna olhavam-me com uma mistura de curiosidade, respeito hierárquico e alguma vontade de rir que mal disfarçavam. Os camuflados que envergavam, já gastos por seis meses de guerra, traziam tanto pó quanto as viaturas. Na cara, suja quanto o resto, distinguia-se uma zona limpa denunciando o lenço aplicado abaixo dos olhos, para proteger o nariz e a boca, quais bandoleiros do faroeste em terra de índios. Índios que ali trocavam a pele vermelha pelo tom do café, cinzelada por séculos de torreira do sol, mas que também lutavam por causas e ideais semelhantes, embora sem toucados de muitas penas, que trocavam por outras penas e canseiras transportadas no olhar, que baixavam quando se cruzava com o nosso.
A vontade de rir vinha-lhes da minha farda meio descabida para aquela situação; um número dois garboso e aprumado de calça castanha e camisa verde seco, tudo muito bem engomadinho, completada com a tradicional boina acastanhada de duas fitinhas, verde e vermelha, pendendo atrás. O gozo que já anteviam era o de imaginarem em que estado ia eu chegar ao Mucondo depois da viagem.
O camarada Alferes Santos apercebe-se a tempo da situação e desencanta um casaco camuflado num militar mais precavido, sugerindo que o vista e o feche bem até acima. Cada vez mais confuso com os acontecimentos da chegada, não percebi logo à primeira, por que razão me ia abafar num camuflado, com o calor que já se fazia sentir àquela hora.
- Daqui por cinco minutos já vais perceber..., dizia-me o Santos perante o meu ar perplexo.
Mas o camuflado não era suficiente para a viagem. Faltava algo mais.
Com poucas palavras, como já se percebera que era a sua maneira de ser, o Santos atira-me ostensivamente uma G3 para as mãos.
- Isto é para o caso de termos algum encontro inesperado pelo caminho. Quando chegarmos lá devolves a arma ali ao nosso condutor, porque, em princípio, não lhe vai fazer falta para a viagem. O “em princípio…” não me tranquilizou nada, se é que alguma coisa me podia tranquilizar naquele ambiente de abismo com uma guerra lá no fundo onde me preparava para mergulhar.
Havia cerca de três meses e meio que eu lidava com a G3. Era capaz de a desmontar e voltar a montar com os olhos vendados em muito pouco tempo, que era uma competição que de vez enquanto fazíamos lá na caserna ao cronómetro. Saber desmontar e montar a arma em pouco tempo, era um treino exigido do qual poderia depender a sobrevivência do combatente, caso esta se encravasse num momento de aperto menos oportuno. Tínhamos feito algum treino de tiro, muita instrução táctica, ordem unida, em suma, conhecia bem a arma e estava familiarizado com ela, enquanto apetrecho tão importante como as botas pesadas e bem engraxadas que calçava ou os arreios que envergava. Mas aquele momento teve um significado muito especial que tenho alguma dificuldade em explicar.
De repente, aquilo deixou de ser um instrumento militar de adorno do combatente, um adereço da tropa, um factor de chatice de ter que transportar às costas (cerca de 3,5 Kg), sendo preferível que ficasse na caserna deixando-nos mais soltos e leves. Já não era uma arma que apenas funcionava como instrumento de morte nos breves momentos da carreira de tiro, em que nos exigiam uma série de protocolos para evitar acidentes. Onde todos os cuidados eram poucos para que ninguém se ferisse. Onde nos davam uma dúzia de balas para treino de pontaria e todo o outro tempo de instrução andávamos com o carregador vazio, como se transportássemos um objecto que enfeitava a imagem do militar, sem mais nenhuma outra servidão. Aquele instrumento que me colocavam agora nas mãos tinha um carregador de vinte munições, uma delas já na câmara pronta a ser disparada com um simples pressionar do gatilho. Apenas uma pequena patilha, que accionávamos com um dedo, separava a prontidão para matar, da segurança da arma para não ferir um companheiro num acidente fortuito. Terminara ali, naquele preciso momento, a função de instrumento de carregar às costas, de pesar dolorosamente no treino das longas caminhadas (desafiando a vontade de a atirar fora) de a apresentar imaculadamente limpa nas inspecções minuciosas e ridículas do comandante de pelotão – um maçarico de Mafra para quem contava apenas o aspecto e não a funcionalidade. Ia passar a ser, nos meus próximos trinta e dois meses e meio de guerra, o instrumento de que poderia depender a vida ou a morte, a companhia inseparável de todos os momentos, quer de sono ou acordado. De um momento para o outro, deixava de importar que estivesse rigorosamente, limpa para passar a estar imperiosamente funcional.
Tornara-se ainda mais pesada. Tornara-se verdadeiramente mortal. E era imprescindível que o fosse naquelas circunstâncias.
- E isto dispara...?
Atirei eu, procurando disfarçar a tremideira miudinha que se me vinha subindo pelas pernas acima, mas também preocupado com o estado lastimoso da G3, também ela entranhada de poeira por todos os lados, quando eu estava habituado a vê-la luzidia e pronta para uma exposição de armas de guerra em tempo de paz.
- Bem, se formos atacados logo vês se dispara ou não...
- ...?!
Engoli em seco. Engoli também o pó que timidamente e sem convicção soprei do cano da G3 e da janela de ejecção, que o aspirante de Mafra, imberbe profissional das guerras de brincar nas tapadas contíguas ao quartel, tanto embirrava que não podia ter um grãozinho de poeira que fosse, porque maculava a devoção que eu deveria ter pela arma.
Como te sopraria com algum prazer aquele pó todo em cheio no teu narizinho arrebitado, pelas cinquenta flexões de braços que me obrigaste a fazer na parada por um hipotético cagalhão de mosquito, que descortinaste no tapa-chamas da minha arma, numa tarde em que estarias mal disposto e te apetecia chatear alguém e exacerbar a tua prepotência militar. Como me ri ali mesmo, naquele momento breve mas pleno de significado, das parvoíces que te mandaram ensinar-me em Mafra. Como tive medo de que afinal não me servissem para nada. Eram zero, tempo perdido, tempo vazio, como vazio era o meu bornal de conhecimentos da guerra, de armas de sobrevivência na mata hostil em que me preparava para penetrar pela primeira vez, temeroso e vulnerável. Tempo do meu tempo de aprender a não morrer. Tempo que usaram e desperdiçaram preocupados com a minha farda, a bota engraxada, as continências, a subserviência, o zelo e o aprumo para me passear na parada do Rossio. Dignificar a farda e a instituição. Respeitar e obedecer. Morrer, se a sorte me abandonar, pela pátria, pela honra (com ou sem ela). Tudo pela pátria, tudo pela grei. E afinal, por mim nada. A minha segurança, o meu bem-estar. A minha opinião sobre a guerra. Se a achava justa. Se 1400 dias de guerra eram um sacrifício justo e se “aquela pátria” os mereceria.

“Sus, a eles!” era o lema que se lia sobrelevando o emblema da Companhia desenhado na frente do Unimog, alimentando o fervor e a unidade dos militares nos momentos de maior desânimo.
A viagem era relativamente curta. Cerca de trinta e cinco a quarenta minutos. Aperrei a G3 voltada para fora como mandavam as normas. O dedo ao longo do guarda-mato, pronto para entrar em acção ao mais leve sinal de perigo. Olhos no mato procurando movimentos suspeitos que vi. Muitos! Mas ninguém se mexeu... Só eu vi.
Os soldados apontavam também as armas para fora como se fosse uma obrigação e falavam descontraídos dos trágicos acontecimentos da manhã lamentando o acontecido. Aquela viagem era uma rotina que acontecia duas ou três vezes por semana. Ninguém se preocupava com o inimigo. Aparentemente só eu. Aparentemente, não! Realmente só eu…
A poeira já me sufocava e o calor também. Subi ainda mais a gola do camuflado até aos olhos. O meu sapato preto, esmeradamente engraxado pela manhã, ia passando lentamente a um tom camurça que eu olhava com tristeza nos momentos breves em que tirava os olhos da mata.
Limpei um deles passando-o pela parte de trás da calça da perna contrária. Fiquei por momentos com dois sapatos completamente diferentes. Um alçado em pezinho de cinderela, pronto a desfilar aprumado na parada, o outro arvorado em guerreiro debutante que dava os primeiros passos numa dura e longa batalha, cujo brandir das armas me estalava já na cabeça e confundia o espírito desalinhado com o torpor do corpo vergastado pelos balanços daquele autêntico touro enraivecido que ameaçava lançar-me borda fora.
O contraste daqueles dois sapatos desanimou-me ainda mais. Mesmo assim desisti de limpar o outro. Poucos momentos depois voltavam a ficar iguais de novo. Os balanços do Unimog continuavam a ameaçar atirar-me borda fora. Depressa aprendi quais as cicatrizes da picada que produziam os maiores saltos. Agarrava-me onde podia quando o balanço era mais forte, para voltar logo de seguida à minha G3 emprestada, que continuava pronta a disparar, mal um macaco mais atrevido se propusesse confundir a minha atenção desmedida aos movimentos do inimigo, correndo obviamente risco de morte. Numa curva mais apertada, em que a velocidade diminuía um pouco mais, aproveitei para perguntar ao soldado que ia ao meu lado se andavam sempre naquela velocidade, que me vinha deixando em pânico desde o primeiro minuto da viagem.
- Tem que ser meu Alferes. Porque assim é mais difícil eles atacarem a gente...
- ... além disso, já estamos atrasados para o almoço.
Esta segunda parte da frase foi a que me pareceu ser a de maior preocupação.
Desliguei-me um pouco da minha inquietação primeira de me resguardar de algum ataque inimigo e procurei descodificar aquilo. Perpassou pelo meu espírito de que o verdadeiro inimigo era bem capaz de não se esconder no capim, mas seguir ali viagem comigo. Qual dos dois motivos se apresentava mais reconfortante para aquela autêntica prova todo o terreno?! Não nos atacarem, ou chegarmos a horas do almoço? Ficarmos por ali, sem glória nem proveito, em mais um dos muitos acidentes meio estúpidos que ocorreram na guerra, era secundário. O importante era que não ficássemos numa emboscada, ou chegássemos a horas para o almoço. Balanceei-me entre os dois pontos de vista e a primeira coisa que me veio à cabeça foi mandar parar a viatura e dizer:
- … Então vão andando que eu vou a pé!

Aquela lógica de guerra começava cedo a roer-me o meu tempo recente de desconforto daquela viagem de pó, de calor, de um soldado sem perna, de fantasmas de inimigos por todo o lado, de macacos que eu não estava a ver como me viriam trazer bananas à minha rede de preguiça, de coração apertado pelos medos que se avolumavam em cada minuto, em cada curva, em cada salto, e eu sem fome nem vontade de continuar viagem, inundado que me sentia já de saudades de tudo o que deixara para trás.
A cerca de cinco minutos do aquartelamento passámos por uma fazenda de exploração de madeira e café. A única da zona num raio de cerca de cem quilómetros. O capataz acenava-nos com as duas mãos da sua mansão colonial. Alguns negros, com ar de maltrapilhos, vagueavam indolentes no terreiro enorme, aparentemente sem nada que fazer. Outros, agachados, sentando-se nos calcanhares, ficavam em círculo em redor de paus que ardiam e soltavam um fumo branco que subia a pique para o céu azul, recortado por árvores seculares que circundavam aquele espaço.
Mulheres, com crianças que dormitavam nas suas costas seguras por um longo pano colorido que atavam à frente, lavavam latas ou varriam o chão com um molho de ramos de arbusto, interrompendo a faina para também acenar à tropa que passava apressada a caminho do almoço tardio e fugia da emboscada do inimigo astuto que espreitava em cada curva.
Há uma subida que encaracola um pouco e acalma aquela loucura em que vínhamos desde Stª Eulália. Mesmo em baixa velocidade o inimigo não se dignou aparecer. Continuava a faltar também o almoço. Ao longe, no fim de uma longa recta e no cume de uma elevação de terreno, avisto por fim o aquartelamento. As viaturas voltam a acelerar mais ainda. A velocidade é agora bem maior tirando proveito daquela recta de piso aceitável. O soldado que vai ao meu lado diz que já lhe cheira a rancho e incentiva com gritos o condutor a pisar no acelerador. Aponto o nariz na direcção certa e nada me cheira que se revele aroma conhecido.
Cheiros novos, sim.
Cheiros fortes que se exalam da terra e do arvoredo imponente de árvores seculares que se agigantam. Outros que vêm do capim muito verde que brota viçoso e alto de tapar um homem, qual seara alentejana ondulante trazendo aos meus sentidos sons conhecidos de mares calmos, ali vazios de marinheiros que os naveguem. Oceanos de nostalgia, que eu sabia que não me iriam abandonar quando o tempo de angústia começasse corromper as minhas memórias de mouro perdido em novas guerras de África, retinindo ainda os sons longínquos de trombetas esquálidas anunciando os desastres das areias quentes e traiçoeiras dos desertos do norte, vangloriados em madrugadas de esperança eterna de sebastianismos patrióticos, que nos venderam envoltos em nevoeiro de manhãs frias da nossa memória de povo. Mares verdes de esperança que acoitam agora outros gigantes de menor peso mas com a mesma raiva de sentimento de chão invadido e consciência devassada.
E nós, montados nas novas caravelas de quatro rodas que voam para fugir ao inimigo em busca de um almoço tardio, já sem cruzes de pregação nas velas que outrora cativavam as almas fáceis dos gentios e os agrilhoavam a padrões sem virtudes nem sentido, mas que por fim se obstinavam contra os que lhes prometeram os céus e os confortos de alma terrenos que nunca tiveram.

Uma hora de guerra está vencida.
Entramos na cerca de arame farpado que protege o aquartelamento, situado numa pequena elevação suficiente para garantir alguma segurança. Espanto-me com tudo. Nada correspondia ao imaginado a partir daquilo que nos contavam em Mafra. As viaturas alinham-se emparelhadas lado a lado, desligando os motores a um sinal conhecido do comandante da coluna. Os soldados apeiam e alinham em silêncio à frente das viaturas para o cumprimento de um ritual de segurança imprescindível. O tirar da bala da câmara da espingarda, que de novo retorna ao carregador a fim de evitar um acidente de caserna.
Cumpro com consciência de aluno de grau zero aquela formalidade nova para mim. Fico meio escondido na fila de trás, onde aprendo como se faz, não me expondo ao exame da minha incultura dos preceitos da guerra que só conhecia dos livros e do que me tinham ensinado os professores de Mafra. Dou pois início a uma longa aprendizagem das coisas da guerra que ali me traziam.
O Santos aproxima-se. Vem cobrar-me o preço da minha ingenuidade de guerreiro aprendiz. Pergunta-me se já tinha percebido a finalidade do camuflado que me forneceu e se tinha visto muitos turras pelo caminho.
Eu batia os pés no chão, tentando rejuvenescer a cor preta de há uma hora atrás do meu sapato e sacudia o camuflado e a boina, sob a contestação do Santos.
- Pára lá com isso! Quanto mais te sacodes mais pó levantas ou ainda não te chega o da picada?
Anui e deixei ficar tudo como estava. Talvez o quartel tivesse uma lavandaria...
No entanto, antes de nos dirigirmos à messe, quis ainda tirar uma dúvida que me tinha surgido já perto da chegada. A uns bons duzentos metros do aquartelamento, e paralelo à picada por onde tínhamos chegado, havia uma tira de terreno com vinte ou trinta metros de largo e uns quatrocentos ou quinhentos de comprimento. Tinha erva rasteira que se percebia ter sido cortada, mas ao meio havia uma pelada a todo o comprimento. Aquela faixa de terreno diferenciava-se da restante paisagem, notando-se ali algum trabalho de capinagem e conservação, embora rudimentar. Naqueles cerca de quinhentos metros formavam-se duas autênticas ondas no terreno cujo desnível seria seguramente superior a uns bons três ou quatro metros. Se nos colocássemos ao nível do chão no plano superior do início daquela faixa de terreno e uma viatura tipo camião fizesse o percurso, a meio desapareceria por completo. Aquilo intrigou-me, mas eu tinha suspeitas nas quais não queria crer. O que era aquilo?
- É a pista de aviação..., responde o Santos já a rir.
- Mas e aterra ali alguma coisa com asas? Perguntei eu quando começava a ver as minhas suspeitas com jeito de confirmação.
- Aterra e levanta. Fazem-te confusão as lombas, não é? Pois, mas parece que as deixaram de propósito. Como a pista é pequena, o avião faz a lomba e quando chega à crista da onda projecta-se mais facilmente no ar. Além disso na descida aumenta mais facilmente de velocidade.
 Eu nem queria acreditar. Aquilo ia contra todas as regras que o meu espírito concebera ser possível em termos de aviação.
- Não estás a gozar? Ainda retorquia eu, na expectativa de se tratar do cumprimento de um ritual da guerra, uma praxe, ali na forma de uma graça para aldrabar maçarico. Mas não! Era mesmo verdade. De qualquer forma prometi a mim mesmo ficar de olho e esperar para ver ali aterrar o que quer que fosse.
Dirigimo-nos para a messe, enquanto eu ainda me voltava para trás por mais duas ou três vezes, esforçando-me por acreditar que aquilo que eu via dali era uma pista para aviões, ou, quem sabe, alguma miragem que a perturbação daquelas primeiras horas me pudesse ter provocado, alimentada pelo Santos já sem paciência para mais explicações.

O aquartelamento do Mucondo era uma antiga missão adaptada às necessidades da guerra, situado no cimo duma pequena elevação de terreno; a mais alta da zona. Havia uma construção central, a único em alvenaria, que foi rodeado de pré-fabricados meio toscos e já envelhecidos pelo uso, adaptados às necessidades duma Companhia de Cavalaria, empenhada numa guerra de guerrilha, e que se dispersavam sem muita ordem pelo espaço do aquartelamento. Nas traseiras daquele pequeno edifício tinham sido acopladas algumas divisões em tijolo e zinco destinadas às messes de oficiais e sargentos e alguns quartos.
Entrámos na messe, eu e o Santos, perante o olhar admirado do Capitão que, ainda à mesa tinha acabado de almoçar com os restantes oficiais da Companhia, ao ver-me de continência em riste apresentando-se... o Alferes miliciano 133767/69 colocado naquela Companhia.
- Mas eu não pedi nenhum Alferes..., respondeu com ar de interrogação e testa franzida.
Apresentado o meu envelope, lacrado por tudo quanto era dobra e profusamente carimbado de “secreto”, o Capitão, retirando o cigarro meio fumado da boquilha e deslocando-a para o canto direito da boca, saiu de imediato em direcção ao seu gabinete, abrindo o envelope.
Fiquei por ali fazendo as apresentações aos restantes Alferes, incluindo o médico, submetendo-me ao interrogatório natural que a minha condição de espécie de ave rara suscitava, que no caso nem era bem rara, mas única e primeira.
Aquela sensação de incredulidade estampada no rosto, já experimentada por mim meses antes, era o que eu via agora nos meus interlocutores, ainda cépticos quanto à verdadeira dimensão e os propósitos que me levavam ali. O Capitão regressou minutos depois, informando-me que já estava inteirado da minha missão, após ter lido toda a documentação que eu trazia comigo. Não fez mais comentários, nem naquele momento, nem em qualquer outro dos quatro meses que havia de ali ficar. Jamais tive conhecimento do conteúdo daquele envelope em papel pardo forte e impenetrável, como se tivessem algum receio de conhecimento público daquilo que se preparavam para consumar.
A Companhia encontrava-se em plena operação no mato, de que resultara o ferido evacuado naquela manhã. O Capitão regressava, pois, à operação, terminado que era já o almoço. Antes de partir deixou ordens ao Alferes que o substituía no comando da Companhia enquanto estava fora. Ordens que se relacionavam comigo, como vim rapidamente a compreender. Entre elas, o meu alojamento e uma visita guiada às instalações do aquartelamento e rede periférica de arame farpado, bem como a distribuição do necessário armamento para o desempenho da minha missão. O Capitão ia ficar fora cerca de três dias, pelo que deixou ainda outras instruções que só foram aplicadas nos dias seguintes. A que ele próprio mais vincou foi a minha primeira experiência no verdadeiro teatro da guerra. Uma coisa curta para me ir habituando, mas com algum significado.
Logo pela manhã do dia seguinte (menos de 24 horas depois de ter ali chegado) foi-me entregue o comando de um pelotão com a missão específica, determinada pelo Capitão, de patrulhar toda a zona onde naquela manhã tinha rebentado a mina. Tudo fazia parte do plano transcrito no tal envelope. Submeter o jovem futuro Capitão ao maior número de testes possíveis, onde demonstrasse as suas capacidades de comando, bravura (leia-se, se tinha cagaço ou não) relação com os subordinados e ao mesmo tempo começar a familiarizar-se com a guerra, porque muita estava por vir.
As primeiras experiências, qualquer que seja o seu âmbito, são aquelas que mais nos marcam. Ali tudo se constituía em novidade, que a angústia e o desconforto pela incerteza de um futuro pouco previsível mais acentuavam e transformava cada episódio num marco de recordações que nos vincam a memória para todo o sempre. Pouco mais de quinze dias antes, passeava-me eu por Mafra e arredores, volteando em marchas e guerras de faz de conta, roubando fruta nos pomares da zona para matar a fome quando as provas se estendiam para lá da hora do almoço, ou noite dentro, o que acontecia com alguma frequência, provavelmente para nos habituarem já às agruras mais reais que nos esperavam.
De repente, estou à frente de trinta homens no epicentro da guerra prometida, com os acontecimentos trágicos da manhã anterior ainda bem frescos na memória de todos. Tudo ali podia acontecer. A minha falta de experiência e imaturidade podiam determinar um acidente por desconhecimento de regras básicas de segurança nos deslocamentos. Os soldados, o que esperam é que quem os comande os conduza pelos melhores caminhos e tome as melhores decisões. Não é da sua conta inquirir das brutalidades do poder e o desprezo que demonstra pela vida e a segurança das tropas que envia para a frente de guerra. Eu tinha consciência disso e o Capitão também, razão pela qual me atribuiu o melhor grupo da Companhia. Havia que cumprir o que vinha determinado nas instruções contidas no documento que eu trouxera. No essencial, submeter o candidato a todas as experiências possíveis e testar as suas capacidades ao limite.
Para lá do teste havia a aprendizagem. Em quatro meses era necessário (e urgente, muito urgente) transformar um jovem cadete com seis meses de instrução básica militar, num Comandante de Companhia, coisa que normalmente demorava anos e tinha por base uma formação militar académica específica, bem como, pelo menos, uma comissão de dois anos no teatro de guerra como subalterno. O tempo era ridículo de tão curto e a missão complexa e arriscada, quer para quem a tinha concebido, quer para quem se via envolvido nela. Isso eu percebi e o Capitão deu-me a entender, embora sem comprometer o sigilo das instruções que recebera.

Naquela manhã, disfarcei o melhor que pude o meu nervosismo e ansiedade. Os soldados procuravam ler em todos os meus actos os indícios do medo, que calculavam obrigatório, o que os faria sentirem-se velhinhos naquelas andanças do mato.
Na caserna, um calendário com uma deusa de beleza estonteante (que apaziguava outras tantas dores de isolamento, quanto as da fome e sede do mato) contemplava já cento e oitenta dias riscados da vida de cada um deles, ratificando uma insofismável sabedoria das coisas da guerra e uma maioridade que eu não detinha, não obstante os galões reluzentes nos meus ombros. E quanto mais reluzentes, mais amaçaricados e menos de fiar.
Os velhinhos do mato eram uma classe superior distinta dos novatos que nada sabiam. Um bacharelato no domínio dos nervos e do conhecimento do terreno e dos seus mistérios, vincado a todo o momento e nas circunstâncias mais diversas e difíceis. Os furriéis, já mais matreiros e observadores, liam-me os actos com desusado interesse, procurando falhas que a minha falta de experiência por certo ditaria, dando azo a um ou outro acto exibicionista, sobrepondo ou corrigindo o comando hierárquico ali esmagado pelo conhecimento adquirido naquela espécie de curso intensivo de seis meses de luta pela sobrevivência.
Julgo, no entanto, que não terão percebido “quantas minas eu pisei” naquele dia. E os cuidados com que escolhia o palmo de chão onde colocar graciosamente o meu pezinho, por vezes mesmo na pontinha do pé, procurando calcar a menor superfície de terreno possível, reduzindo assim em cerca de 50% a probabilidade de acertar na mina. Nem terão entendido os percursos esquisitos que escolhi para a marcha, invocando instruções operacionais, mas que marcavam a necessidade de evitar todos os potenciais pontos de colocação de minas, no meu entender teórico, claro, mas ridículos e excessivos, embora acatados à luz das “ordens” recebidas. Ainda que os tenha obrigado a andar fora dos caminhos obviamente seguros, porque mais que calcorreados e pisados, espezinhando silvas e espinheiras que maltratavam o corpo e uma divisa de seis meses de velhice que com garbo ostentavam. Quinze dias antes, em Mafra, o inimigo era o dono de um pomar meio aniquilado pela fome de trinta cadetes, que na pior das hipóteses nos ameaçava com uma queixa no quartel, a qual, sempre que concretizada, nunca chegava a bom termo, porque as fardas todas iguais confundiam as caras, tornando ausentes os réus materiais dos prejuízos. Em quinze dias, uma laranja roubada para mitigar a fome, era substituída por um pequeno objecto capaz de me destruir ou alterar por completo a minha vida e os planos adiados que tinha deixado para trás.
Fingi não ter medo. Dissimulei os meus receios de tudo, mas essencialmente de os levar para o local errado com consequências imprevisíveis para todos. Achei que a humildade fazia ali todo o sentido. Que a prepotência dos galões soava a ridículo tornando-se até perigosa e inconsequente. O Alferes Chagas prevenira-me que o Furriel Ramos era um autêntico guerreiro, um perfeito Rambo em quem eu podia confiar nos momentos mais difíceis. Aproveitei a dica e a oportunidade o melhor que pude. De forma dissimulada, subalternizei-me ao “Montijo” (alcunha do Ramos) e tive a minha primeira lição de guerrilha, de comando e de humildade. Ele era um líder predestinado reconhecido por todos, menos por ele. Um líder natural. O exercício da sua autoridade vinha-lhe da qualidade do trato e da coerência e justiça das ordens. Jamais usou as divisas ou os instrumentos administrativos para exercer a sua autoridade. Os soldados viam nele a segurança imprescindível para enfrentar as adversidades da mata e da guerra. Eu encontrei ali a muleta de que necessitava para aos poucos ir compreendendo os mecanismos da sobrevivência, em todos os sentidos em que se queira entendê-la, que eram os que mais me importavam aprender. Compreender a guerra e os esquemas do inimigo, de forma a ser capaz de responder à tarefa inaudita a que me obrigavam de comandar 160 homens num ambiente hostil, em que a responsabilidade por quaisquer desastres me seria inexoravelmente assacada, como se de um militar profissional se tratasse. Na hora de responder pelos erros, não tinha dúvidas de que o réu seria eu e não os doutos cérebros que me descartavam sem pejo nem pudor à sombra dos desditosos deveres para com a pátria. Num dos inúmeros encontros que promovi comigo mesmo, procurando avaliar o peso da responsabilidade e o nível das consequências que aquela autêntica aventura representava, tomei algumas decisões que haveriam de me orientar os actos naquele estágio e no futuro que viesse.
A mais importante, talvez, que acima de tudo eu devia aprender a preservar a vida e a segurança dos que estavam comigo, como objectivo primeiro, ou mesmo único, da minha participação na guerra, substituindo na responsabilidade todos aqueles que, de uma forma tão superficial, menosprezavam a nossa existência e por vezes até a nossa dignidade. As vitórias militares e políticas, essas deveriam ficar reservadas aos militares de carreira, porque era essa a sua responsabilidade e o seu dever, consignados em juramentos e representações emblemáticas das escolas de formação de que tanto se orgulhavam. Se não tinham sido capazes de o conseguir até ali, não era a mim que deveriam pedir para o fazer. A mim parecia-me caber a tarefa exígua, mas de extraordinária importância para a minha consciência, de apenas procurar não arrastar mais inocentes para causas perdidas, que aparentemente ninguém parecia querer entender.

O regresso ao quartel ocorreu por volta da hora do almoço, sem que o inimigo se tivesse dignado a aparecer, para minha enorme satisfação, como bem se compreenderá.
Naqueles primeiros dias fui-me inteirando do funcionamento interno da Companhia. Organização militar e administrativa. O Capitão (oficial de cavalaria do quadro permanente) deu-me conselhos que visavam o meu futuro. Não deixei de notar que não havia muita convicção nos conselhos que me dava, como se ele próprio não acreditasse muito que aquele autêntico desmando politico-militar viesse a ter algum sucesso. Fazia-o, no entanto, por consideração e no sentido de procurar transmitir conhecimentos básicos essenciais que promovessem alguma funcionalidade operacional no desempenho difícil que me esperava. Dava muita importância a assuntos de índole administrativa e eu sempre a querer e a questionar a todo o momento temas de organização táctica militar e da guerrilha. Essa era a minha verdadeira obsessão. Eu queria lá saber dos papéis. O que me preocupava era saber tudo sobre IN. As manhas, os defeitos, as virtudes, o rosto. Eu queria era saber como o enfrentar na hora da verdade. Como me defender e preservar a segurança dos 160 militares que me iam entregar. No meu espírito, inquieto desde o primeiro momento em que todos nos convencemos que aquela empresa ia mesmo por diante, jamais passou a ideia de que o treino teria por objectivo essencial a preparação para ganhar a guerra, para vencer o inimigo. A ideia, que de um modo geral nos envolvia a todos, era a de que, naquela guerra, a única coisa que interessava era regressar são e salvo para retomar finalmente o fio à meada da vida, interrompida durante aquele período de sacrifício que nos era exigido. A guerra em si não nos dizia nada. Provavelmente nunca nos disse nada. Mas ali, a questão era subverter a realidade dos meus 22 anos, despidos de conhecimentos da vida e de valor zero no domínio da coisa militar, que procuravam inculcar-me atabalhoada e apressadamente pelos ouvidos e olhos dentro. O resto ficava ao sabor da sorte, sublimada na molhada de deveres para com a pátria, que me impingiam a todo o momento, sugando-me os projectos de vida que construíra e minando, ao mesmo tempo, a minha própria crença do dever de lutar por aquela pátria longínqua e desconhecida.

A teoria foi sendo integrada com avidez e desejo de abarcar tudo.
O Capitão percebia a minha sofreguidão e procurava acalmar-me dizendo-me, inúmeras vezes, que o bom senso e alguma experiência resolveriam as coisas à medida que fossem acontecendo. Falava-me também em algo que já ouvira em surdina lá por Mafra. Que o instinto de conservação acabaria por resolver os momentos mais difíceis. E eu que não conseguia ver as coisas por esse lado, quando o meu instinto de conservação me impelia mais para me mandar dali para fora o mais depressa possível. O meu instinto de conservação eu preferia utilizá-lo noutras circunstâncias menos delicadas.
Sempre debaixo de olho do Capitão, que me avaliava até a maneira de comer, de andar e de jogar à bola, passaram a ser-me atribuídas responsabilidades cada vez mais complexas: comandar colunas de reabastecimento até Stª. Eulália, ou de autênticos comboios de viaturas civis de transporte de madeira e café pela estrada de Carmona, idas até Quibaxe comprar géneros e materiais necessários que a tropa não fornecia, fazer protecção aos trabalhadores na capinagem das plantações de café e mais um sem número de actividades que nos ocupavam todo o tempo em que a Companhia não se encontrava em actividade operacional no mato. As operações no mato, essas viriam depois.

A minha proveniência da aldeia deve ter contribuído para um certo hábito de apego às pessoas e aos seus problemas que sempre comigo conviveu e me fez por vezes até esquecer da guerra para de algum modo comungar do sofrimento das populações, procurando minorar-lhes as carências e a amargura que a vida lhes proporcionava na labuta do dia-a-dia pela sobrevivência. Esta vivência de proximidade permanente e a comunhão dos problemas fomenta a união, a solidariedade e espírito de corpo, o mesmo espírito de corpo que nos pediam na guerra na luta contra o inimigo.
Na aldeia os problemas dos vizinhos eram também nossos. A entreajuda não era bem uma instituição arquitectada com um determinado fim. Instituía-se naturalmente pela necessidade do apoio mútuo que nos ajudava a suportar a inclemência dos tempos e o vazio do bem-estar e do conforto. Uma espécie de mecanismo de sobrevivência que se despoletava por si e nos entrelaçava de mãos e espírito, comungando as dificuldades e as agruras da vida. Quem construía uma casa, no dia de colocar o telhado (placa de cimento que configura a açoteia algarvia) toda aldeia se prestava ao trabalho gratuito de forma a concluir a obra num só dia, como mandavam as regras de construção. Quase sempre o dia escolhido era o domingo. Era frequente sobrar gente. Mas mesmo sobrando, ficávamos todos participando com a nossa presença e espírito solidário, como que querendo significar que estávamos ali para o que fosse necessário naquele momento e para o futuro também. Na aldeia, era costume sobejar boa vontade e solidariedade, único conforto que nos aquecia nas longas noites de vento frio do inverno político que nos fustigava, escurecendo-nos os dias amargos de labuta árdua e tempo incerto, corrompendo-nos a fé mas sem dobrar o ânimo de cada um de nós nem a esperança de que no dia seguinte o sol nasceria de novo radioso e cheio de vida, retemperando a vontade de continuar a viver cada dia que passava.

O meu primeiro contacto com os trabalhadores da fazenda, que distava cinco minutos do quartel do Mucondo, aconteceu numa dessas protecções aos trabalhos do amanho das terras de cultivo do café. Mais propriamente, naquela altura, cortar o capim que brotava espontâneo em volta dos pés dos cafeeiros, retirando-lhes a força necessária ao desenvolvimento do arbusto e dificultando o trabalho da apanha quando mais tarde viesse a ocorrer.
Eram cerca de trinta apinhados no camião da fazenda. Maltrapilhos de pé descalço, olhos tristes raiados de vermelho e ainda meio ensonados, que resumiam fulgores duma ressaca abruptamente interrompida na madrugada, mal o sol raiava os primeiros prenúncios de claridade, antevendo o braseiro sufocante que se estenderia pelo dia inteiro. Armados de catana, instrumento universal que lhes servia para tudo, até para fazer a guerra, encostavam-se uns aos outros, cotovelo apoiado no joelho e mão segurando a cabeça ainda pesada, cochilando réstias de um último sono que dormitavam até ao local de trabalho. A picada mal tratada agitava o camião em balanços que dificultavam o curtir dos últimos vapores instilados em mais uma noitada de Nocal ou Cuca (cervejas angolanas) de mistura com fumos inalados em grupo de um mesmo cigarro de ervas de feitiço que ajudavam a esquecer mais um dia vazio de esperança de nada esperar.
À chegada a ordem veio bruta, inesperada e ameaçadora de um capataz abrutalhado que os trazia como rebanho e se derretia subserviente quando falava comigo, para logo cuspir fogo e outras incandescências quando se virava para o pessoal que chefiava no trabalho.
- Tudo p´ró chão, cambada de preguiçosos..., que continuava com uma interminável ladainha quejanda na indignidade e prepotência. Aquele vociferar ameaçador acordava-os repentinamente do sono que traziam ainda desde a fazenda, levando a que se levantassem apressados empurrando-se uns aos outros na descida do camião, deixando perceber conhecerem bem as consequências do não cumprimento imediato das ordens que vinham do capataz.
Ainda o desfile de impropérios não tinha terminado, e já todos se alinhavam no chão, qual tropa romana disciplinada de arma na mão pronta para qualquer missão, ainda que submissa apontando para o chão, aguardando a distribuição das tarefas que sem parar lhes eram destinadas sem perda de tempo. Em minutos todos trabalhavam com uma eficácia que me deixava perplexo, enquanto o “Montijo” ia distribuindo o pessoal por pontos estratégicos que garantissem a segurança de todos.
Com um pequeno pau, que alguns já traziam de casa e outros fabricavam no momento no arbusto mais próximo, inclinavam ligeiramente um molhe de capim, para, acto contíguo, aplicarem uma catanada certeira que o desbastava com uma enorme eficiência, para logo, de forma automática, uma nova molhada se vergar e cair decepada no chão. Eram autênticas máquinas que ali me fizeram lembrar os ceifeiros e ceifeiras alentejanos, nos tempos da ceifa do trigo à torreira do sol nas planícies do Alentejo.
O capataz, percebendo o meu silêncio enquanto assistia ao descarregar da “manada”, sentiu necessidade de alguns esclarecimentos, enquanto limpava o suor abundante da testa e alguma espuma do canto da boca por tão empolgado esforço matinal.
- Isto sr. Alferes, esta malta, são piores que animais. Só se querem assim.
assim de facto incomodava-me.
Eu era ali um novato completamente fora daquele quadro de entendimentos que me fugiam e atordoavam. A minha sensibilidade por certo não era para ali chamada. Era um facto que a cena me tinha impressionado. Sempre me impressionaram as prepotências gratuitas aplicadas sobre os indefesos e oprimidos. Mas não me sentia à vontade para um debate de opiniões e pontos de vista às sete horas da manhã, algures, eu sei lá onde, no norte de Angola, para mais com um capataz com ideias empedernidas e mais que exercitadas sobre os negros. Desviei um pouco o caminho em busca de uma outra saída que mantivesse o assunto de pé, embora sem propósitos de confrontação, que o meu estatuto de maçarico, também naquele campo, aconselhava. Não me sentia em condições de altercar abertamente sobre aquele tema. Mas também me estava a custar deixar as coisas assim sem um grãozinho de areia na engrenagem secular, a que o capataz, pressuroso e cretino, dava continuidade.
- Há uma coisa que me está aqui a fazer confusão, disse, enquanto cruzava a G3 no peito repousando-a nos braços, como o faria a uma criança para adormecer.
- Diga, diga, sr. Alferes, respondia-me o capataz, revelando alguma inquietação na expressão e nos gestos.
- Já o ouvi hoje dizer várias vezes que isto é tudo uma cambada de preguiçosos. Mas olhe que eu nunca vi trabalhar desta maneira. Eles são autênticas máquinas.
- Ó sr. Alferes. Não queira saber o trabalho que isto nos deu..., retorquia o capataz com ar meio aliviado pela superficialidade da questão, quando esperava alguma atitude mais contundente (e por certo insensata) da parte de um maçarico recém-chegado, com ideias ainda pouco amaciadas pelos hábitos que por ali se haviam firmado desde longínquos quinhentos anos atrás.
- Ao princípio chegávamos aqui pela manhã e púnhamo-los a trabalhar até à tardinha.
- De sol a sol..., interpus de forma a clarificar melhor aqueles imprecisos... pela manhã e... à tardinha.
- Sim... mas não queira o sr. Alferes saber o que nós passávamos para que fizessem alguma coisa. Aquilo só a chicote... escapou-se-lhe.
- ...não é que..., quis emendar.
- Claro..., facilitei, no sentido de o deixar continuar solto e sem peias que mascarassem o discurso que eu desejava próximo da verdade quanto possível.
- Agora mudámos o sistema. Destinamos uma determinada área a cada um e quando terminarem... até podem descansar. Quando todos terminarem, vamos embora. Calculo que hoje por volta das 14 horas estejamos prontos. Antigamente, nem metade até à noite.
 - Bem, então preguiçosos não será bem o caso. O que estavam era a precisar de alguma orientação..., acrescentei procurando colocar timidamente alguns escolhos naquela lógica de tempos imemoriais.
- Pois..., sorria com pouca vontade o capataz, mastigando aquela imprecisão, procurando enxergar aonde eu queria chegar, enquanto aliviava o diálogo lançando um olhar de controlo sobre o andamento dos trabalhos.
Voltou à carga com mil e uma explicações e rodeios, claro sintoma de achar que não se teria feito entender como desejava e propósito evidente de esclarecer pruridos que por ali tinham ficado soltos e incómodos.
O diálogo não fora muito construtivo, resultando claro que tinham sido mais os desencontros que os pontos de união e confluência de ideais.

Naquela altura era o tempo do café florir.
Eram extensos mantos brancos a perder de vista, entrecortados no verde muito vivo da vegetação densa e luxuriante dos Dembos. Autênticos mantos de amendoeiras em flor, que brotavam da minha memória exaurida pelos milhares de quilómetros de distância, mas viva e sempre presente nos momentos de leveza do pensamento, alheio aos entraves de latitudes distantes, vencidas pelo desejo imenso de agarrar as lembranças recentes, guardadas em lugar seguro e recuperadas nas noites longas e escuras da guerra.
Ali o tempo era de espera. De espera pelas 14 horas prometidas pelo capataz. De espera que cada um dos trabalhadores cumprisse o desbaste rápido do capim do seu quinhão. De esperança que o inimigo não atacasse. De esperança que aqueles quatro meses passassem depressa. Sem esperança que a guerra tomasse outros rumos e nos trouxesse o entendimento que todos desejávamos, mas que parecia claro que se perfilava cada vez mais distante.



Parte 2

240º Dia

... Seis anos.
A breve prazo concluiu-se que tínhamos trazido para casa o pior dos inimigos. Uma mascote que se recusava a sê-lo. Queríamos transformar um emblema do inimigo, nascido e criado na guerra do mato, em imagem de bondade, segurança e conforto proporcionada pelo ocupante. Uma mentira que o Júlio jamais permitiu que acontecesse...

Um mês de Mucondo. Adoeço.
Não me tocava ainda uma febre de paludismo inesperado que, mais tarde ou mais cedo, a todos os que passaram por África haveria de bater à porta.
Após um dia inteiro em coluna de ida e volta bem para lá do Onzo, direcção de Nambuangongo (de pesada memória do início da guerra) a cerca de 200 quilómetros, senti uma espécie de borbulha no pescoço que cocei. De seguida limpei o pó dos olhos que me cegava. O suficiente para uma micose típica alastrar pelo pescoço, cara e pálpebras e me tirar por largos dias da picada e da minha estreia nas operações ao lado do Capitão.
Não perdi pela demora. Mais tarde ou mais cedo iria parar ao mato no teste mais importante de quantos me sujeitavam ali.
Numa das operações em que não participei foi capturado um rapaz que não teria mais de seis anos. O Júlio, que nunca percebi se era o seu nome verdadeiro se adoptado. Normalmente era atribuído o nome do soldado que o capturava. Como era costume, foi adoptado pela Companhia, passando a funcionar como uma espécie de mascote, uma tradição para a maior parte das companhias em África. Na altura o Júlio dizia-se ser filho dum comandante de um grupo importante que actuava na zona. Passou a habitar a camarata dos Sargentos. Para melhor compreensão, convirá reforçar que o Mucondo, como a quase totalidade dos aquartelamentos da guerra em África, era um sítio isolado distante da civilização, distante de tudo.
O Júlio jamais sossegou desde o momento da sua captura, em que esperneou e gritou a plenos pulmões que o matassem ali mesmo mas que não o levassem.
Nunca chorou.
Seis anos.
Integrado no aquartelamento, mas desorientado no lugar em que se encontrava, tentou aliciar mais de metade da Companhia para o levarem de novo para o mato. Roubou e enterrou munições que retirou de um carregador de G3 na caserna dos soldados. Foi encontrado por mais de uma vez a tentar desmontar uma G3 no intuito evidente de a fazer desaparecer, para posteriormente a utilizar na fuga que planeava todos os dias.
Seis anos.
Quando um dia um grupo de mulheres e crianças afectas aos guerrilheiros se apresentou, seduzidas por uma operação de acção psicológica de nome “Vinde a nós”, em que foram lançadas no mato t-shirt’s e panfletos com promessas de bem-estar, o Júlio passou dois dias a insultá-las pelo seu acto de renúncia, chegando a tentar agredi-las fisicamente.
Uma noite, dissimuladamente, e no intuito de as maltratar, lançou algumas munições de G3 para a fogueira em que as mulheres se aqueciam, cuja deflagração feriu duas delas e levantou um pandemónio no aquartelamento por se julgar que estávamos a ser atacados.
Seis anos.
A breve prazo concluiu-se que tínhamos trazido para casa o pior dos inimigos. Uma mascote que se recusava a sê-lo. Queríamos transformar um emblema do inimigo, nascido e criado na guerra do mato, em imagem de bondade, segurança e conforto proporcionada pelo ocupante. Uma mentira que o Júlio jamais permitiu que acontecesse.
Por motivos de segurança, foi decidido transferi-lo rapidamente para um acantonamento de refugiados algures em Angola, onde naturalmente seria sujeito a intensa acção psicológica que o traria de volta ao convívio e sossego de mais de quinhentos anos de ocupação. Quinhentos anos ali renunciados em definitivo pelo Júlio, recusando continuar naquela mentira de mendigar o futuro incerto que lhe queriam vender a troco do silêncio de um consenso falso e da submissão.
Seis anos.
O Júlio incomodou-me.
Nessa noite dei por mim a pensar que aquela era já uma guerra perdida. Deitei-me no meu quarto sem janelas, situado no interior daquelas instalações precárias construídas à pressa sem grande convicção de serventia para o futuro, e senti uma vontade imensa de aderir à causa do Júlio.
Adormeci com dificuldade após ter longamente tentado entender a força das convicções daquela criança, que medi com as minhas, sentindo-me derrotado naquele confronto.
O Júlio partiria dois dias depois de ter tentado punir com a sua raiva os ex-acólitos que, cansados de guerra, tinham por fim desistido. Uma desistência que nada tinha a ver com uma eventual nova esperança, prometida agora pelo braço armado do colonizador, que deixava t-shirt’s brancas na mata com a expressão pérfida de “Vinde a nós” estampada em letras garrafais e promessas de autênticos paraísos, para depois os receber a ração de combate fria e condensada, mesmo assim um autêntico manjar para quem comia quando havia e o que havia pouco ia além do pirão que restasse depois do passar da tropa que tudo devastava, ou de uma chuva de napalm largada pelos Fiat ao abrigo das convenções do silêncio das matas distantes de Angola. Trocavam apenas o desconforto da privação total que lhes proporcionava a guerra e a vida no mato por uma réstia de duvidosa esperança de alguma paz e sossego junto do inimigo. Talvez para retemperar energias e mais tarde retomar a luta com outras armas e outro ânimo.
O Júlio recusou sentar-se junto das mulheres na viatura que os transportou a todos dali para fora. Era um autêntico guerreiro que não admitia desânimos ou traições à causa. Até na pose direita e altiva que perfilava na viatura. Que não vendia esperanças ou promessas. Que as construía ele mesmo pela força das armas, uma inquebrantável vontade de vencer e um punho fechado que sempre lhe vi em todos os momentos.
Partiu com os olhos secos e a respiração alterada pelo desespero, fulminando-nos a todos com aquele olhar vivo de raiva e angústia.
Seis anos.
Nunca olhou para trás, enquanto a coluna se fazia à picada iniciando a descida do pequeno morro do Mucondo, ponto de partida de um novo rumo sem norte, que o Júlio tomava sozinho nas mãos. Numa pose de firmeza e determinação, sentou-se no lugar que ele mesmo escolheu bem longe das mulheres e fixou o caminho que o levava em desespero para longe, muito longe, daquilo que sentia ser o seu terreno de luta, onde ficava a família e o firme desejo de lutar com todas as armas por uma pátria que não teria que dividir com outros que não exibiam na pele as mesmas cores do sol africano.
O Júlio não me marcou só a mim.
Nos dias que se seguiram ficou no ar um silêncio cúmplice da causa do Júlio. Uma espécie de homenagem escondida que todos lhe prestávamos na forma possível. Um silêncio que traduzia mil e um desejos de pararmos por ali e regressarmos às origens, onde também havia uma pátria amordaçada por construir e um futuro novo por desbravar.


A vida havia, no entanto, de continuar.
E havia um Capitãozinho por construir e uma guerra para levar por diante. O meu primeiro dia de guerra a sério foi finalmente anunciado. A minha primeira operação no mato foi-me comunicada com um dia de antecedência. Não contaria com a presença do Capitão que, entretanto, fora de férias.
O suficiente para uma noite de conjecturas e imaginação de cenários de guerra sem fim. Aparelhei-me ao longo de todo o dia em termos de armas e bagagem como se me preparasse para uma longa viagem de regresso incerto. G3 limpinha e reluzente pronta para a função e em condições de superar uma inspecção rigorosa de parada pelo lindinho lá de Mafra. Quatro rações de combate (cada uma acondicionada numa caixinha com cerca de 7x20x30) que daria para os quatro dias de duração previstos para a operação. Algumas bolachas meio intragáveis substituiriam amargamente o pão na tarefa de ajudar a deglutir as latas de conserva, bisnagas de doce, leite condensado, cubos de marmelada e uma ou outra peça de fruta cristalizada.
O Santos veio ter comigo, admitindo que eu precisaria de algum apoio naquela primeira tarefa de preparar o meu saco de lona esverdeado, o qual transportaria às costas durante quatro dias, apenas com folga na hora de dormir ou nas breves paragens para as refeições.
As quatro caixinhas de ração de combate, bem acondicionadas no fundo do saco, provocaram um largo sorriso no Santos.
- Escuta lá ó maçarico. Pensas que vais para algum piquenique? Já agora vê lá se não te esqueces de levar também a escova de dentes...
Não apanhei a ironia logo à primeira. É que comigo funcionava outra máxima. Quem vai para o mar avia-se em terra.
- Pois, meu caro. Mas ao fim de umas horas com esta carga às costas, garanto-te que o que aviaste em terra só vais ter vontade de atirar ao mar.
Das quatro caixas o Santos reduziu-me a carga para metade e eu a sentir o meu estômago em grande aflição pontapeando-me para que tal não permitisse.
 - A partir das primeiras horas de operação vais ver que a vontade de comer te vai desaparecendo lentamente. No fim aposto que ainda te vai sobrar uma latita de rojões ou umas sardinhas em molho de tomate. Vê mas é se levas água de reserva porque no mato nunca se sabe.
Acedi não muito convicto. Apetite foi coisa que nunca me faltou e quando me esforçava parecia até que me aumentava a vontade de comer.
Tive ali a minha primeira aprendizagem de sobrevivência no mato. As rações de combate retiradas foram trocadas por mais um cantil de água e um carregador de munições sobresselentes – e isto porque íamos para uma zona onde, em princípio, não iria faltar água, porque de contrário seria avisado levar ainda outro cantil.
- Nesta guerra há duas coisas que não te podem faltar: munições e água. O resto, com maior ou menor dificuldade encontras no mato ou suportas até chegar a casa, dizia-me, em tom solene, o Santos, do alto da sua experiência de 180 dias a subir e a descer montes, enquanto já se dirigia para a porta de saída deixando-me entregue a meia-dúzia de dilemas que tinha que resolver sozinho.
Não partia muito convicto da correcção daqueles preceitos de guerra desconhecidos para mim. Especialmente aquela de levar apenas duas caixas de ração de combate para quatro dias. Mas a experiência era coisa a que eu sempre dera muita importância e nem me passou pela cabeça teimar em não seguir os conselhos do Santos.
Às quatro da madrugada um leve toque na porta soava a uma espécie de cornetim anunciando a alvorada. Nessa altura, não levava mais de umas duas horas de sono, de mistura com uma catadupa de inquietações que me atormentavam o espírito e me faziam imaginar os cenários de guerra mais patéticos que se possam imaginar.
Um estranho pequeno-almoço servido às 4:30 por um militar estremunhado, tomado na messe à luz mortiça e amarelada de uma lâmpada ensonada pendente na extremidade de um fio eléctrico entrançado, antecedia a formatura à frente das viaturas alinhadas na parada. Entre muitas sensações estranhas, retive a temperatura do ar. Embora fardados com camuflado, bota de lona e quico (pequeno boné com uma pequena pala e dois bicos atrás que faziam escorrer a água da chuva para fora do pescoço) podíamos estar ali em tronco nu que nenhuma aragem nos perturbaria.
Ainda noite, arrancámos finalmente em direcção ao Mufuque, região montanhosa que distava uns bons quinze quilómetros dali e que se via perfeitamente do quartel, sempre que o cacimbo permitia.
Comandava o Alferes mais antigo, o Chagas, que substituía o Capitão, sempre que este se ausentava ou ficava impossibilitado de participar nas operações. Uma espécie de segundo comandante operacional da Companhia.
Pouco mais de trinta minutos após termos saído do Mucondo, apeámos e demos início à caminhada em direcção ao 1020 (cota topográfica da maior elevação da região) célebre monte daquela zona, que ficou conhecido com aquela denominação supondo-se ser refúgio de vários acampamentos inimigos.
Connosco iam dois contratados negros recrutados na fazenda com a função de carregadores, mas que tinham uma missão bem mais específica, se bem que por vezes fossem solicitados a transportar o aparelho de rádio do rádiotelegrafista, um TR-28, talvez com mais de dez quilos. À medida que íamos avançando, a mata ia ficando mais fechada e o sol lentamente desaparecendo. A partir de certa altura só era possível avançar abrindo caminho na vegetação à catana, função então a cargo dos dois contratados.
Aquela primeira operação iria ficar na minha memória pelos episódios mais extraordinários relacionados com a grandeza indescritível da mata virgem do norte de Angola, bem no coração dos Dembos. Em determinada altura o “Montijo”, a minha verdadeira muleta em tudo o que se relacionasse com actividade operacional, chamou-me à atenção para o local exacto em que o soldado Guia tinha ficado sem uma perna, o que achei estranho considerando tratar-se de um local de terra batida onde a colocação duma mina havia de deixar marcas no solo suficientes para denunciar que o chão havia sido revolvido.
E assim era. Só que, dissimuladamente, uma folha de bananeira tinha sido suavemente dobrada sobre o trilho, disfarçando qualquer indício de terra momentos antes remexida. Um simples aproveitamento do elemento natural era suficiente para iludir quem ali se encontrava fora do seu terreno. Passaram sete ou oito sobre aquela folha levemente inclinada sobre o caminho, calhando ao Guia pisá-la e ser projectado a dois ou três metros de altura. A táctica do inimigo haveria de mudar. Por sistema não repetiam a mesma estratégia até à chegada de nova tropa. A argúcia e os estratagemas funcionavam ali por ciclos. Ciclos de táctica e de imaginação. Ciclos de paciência, infindável paciência, e perseverança que almejavam um futuro novo e promissor, para quantos se sacrificavam no mato e na guerra.
Arrepiei-me um pouco e instintivamente passei levemente de largo como que receando que lá tivessem colocado outra mina.
A mata adensa-se de uma forma indescritível. O verde brota espontâneo em densas folhagens de todos os tamanhos, tons e feitios, sombreados pela copa de árvores frondosas de troncos revestidos por densas camadas de musgo e trepadeiras. O arvoredo que brota cerrado do chão eleva-se bastante acima das nossas cabeças. Não se enxerga nada dois metros adentro daquele emaranhado de folhas e caules. É como se, náufragos, nos debatêssemos mergulhados nas ondas de um mar revolto. A humidade e o cheiro da terra encharcada mistura-se com os aromas fortes daquela vegetação nova e luxuriante. Os cheiros são difíceis de descrever. A abundância e a intensidade de toda aquela amálgama de aromas quentes asfixiam-nos.
Sempre que hoje os recordo, vem-me à mente a sensação de aromas quentes e doces, que se intensificam em determinados momentos, para logo se diluírem um pouco mais à frente, quando uma ou outra clareira nos facilita a passagem e não temos que pisar aquele manto de vegetação densa, que explode em cheiros fortes macerada debaixo dos nossos pés.
O chão é lamacento enterrando as nossas botas de lona por vezes até meio da perna, que mais à frente lavamos num pequeno riacho de água cristalina que chilreante se vai escorrendo num leito de um metro de largo e dois palmos de fundo.
Os dois assalariados não param. Durante horas e horas a fio abrem caminho naquele emaranhado de vegetação quase impenetrável, usando a catana com uma perícia incrível, minando um autêntico túnel por onde cabíamos por vezes de cócoras ou gatinhando de forma a contornar a dificuldade em cortar mais alto, quando a densidade de troncos e espinheiras a isso obrigava.
De quando em vez, ordem para parar vinda da frente e a exigência de silêncio absoluto do ruído que a nossa deslocação por entre folhagens produzia, tentando captar algum ruído que indiciasse a presença do inimigo ou procurando esclarecer sons que nos confundiam frequentemente vindos das aves e dos milhentos animais da selva que povoavam aquela autêntica explosão de vida. Progredíamos obviamente em fila a uma distância de um a dois metros do companheiro da frente. Era possível ver apenas um ou dois, quer para a frente quer para trás. O terceiro já se perdia de vista envolto na folhagem larga das plantas e arbustos. Frequentemente era necessário mandar parar à frente para que os últimos se não atrasassem e não se perdessem. O ruído das catanas decepando troncos e folhagem ecoava cadenciado naquela atmosfera fechada onde o silêncio de vozes era sepulcral. O único som que se escutava a alguma distância dilacerava a vegetação cuja densidade nos garantia sermos os primeiros seres humanos que por ali passavam em séculos de história e de vida luxuriante plena de beleza indescritível.
Por vezes ecoava um impropério meio amaldiçoado de um militar que escorregava e se encharcava de lama, ou enterrava um pé num autêntico lodaçal menos visível no emaranhado rasteiro de trepadeiras espinhosas, que nos dilaceravam os tornozelos e as pernas, ditando o fim de um camuflado novinho em menos de dois ou três meses de uso. Há uma sensação de desbravar o desconhecido. Uma espécie de retorno à navegação marítima de descoberta de novos mundos até então desconhecidos. Era garantido que nenhum ser humano tinha alguma vez passado por ali. A designação de floresta virgem glorificava ali o seu verdadeiro significado e esmagava-nos com tanta beleza e imponência.
Quando entrámos na imensidão daquela vegetação fechada algumas horas atrás, o dia estava lindo. Nem uma nuvem. O sol era brilhante e quente. Mas ali estava escuro e o ar era húmido e fresco. Era como se o sol tivesse repentinamente sido ofuscado por uma tremenda tempestade a ponto de transformar o dia em quase noite. As bússolas iam supostamente apontadas na direcção do 1020. Nem sempre podíamos seguir o rumo indicado pela agulha que, nervosa, por vezes parecia enlouquecer rodando 180º como se o norte de repente fugisse para sul, para logo apontar para Leste. As dificuldades da floresta obrigavam-nos com frequência a optar pelo trajecto menos fácil, por vezes quase inacessível, para vencer as dificuldades do terreno e da própria arborização.
No briefing que tinha tido lugar um dia antes da operação, tinham-me fornecido o azimute da elevação. De vez em quando eu mirava a minha bússola e tentava perceber se estávamos no caminho certo. Por vezes parecia-me que sim, para logo achar que andávamos ao contrário. O norte ali era por vezes um ponto perdido, como nós naquela imensidão escura e por vezes bafienta, sem estrela polar que nos alumiasse o caminho, numa espécie de retorno a mares desconhecidos, perdidos em novos cabos de tormentas de vagas cruzadas que nos pareciam querer atirar borda fora.
De repente ordem para parar. Ficámos demasiado tempo inertes e agachados de ouvidos apurados tentando ler os acontecimentos que ocorriam lá na frente. Ninguém sabe o que se passa. A coluna alonga-se por mais de cem metros de comprimento. Eu encontrava-me sensivelmente a meio. Maçarico não tinha direito aos lugares da frente onde se tomavam as decisões. As notícias levam algum tempo a chegar cá atrás. O silêncio enerva. Podia não ser coisa boa.
Ouvem-se por fim alguns sussurros. Da minha frente segredam-me.
- Parece que andamos às voltas e já passámos por aqui há cerca de uma hora atrás...
- Já não é a primeira vez. Com os nabos do 2º pelotão à frente é o que dá..., ouve-se atrás de mim.
- O Alferes Chagas é perito nestas coisas. Da outra vez quase que morríamos à fome perdidos na mata! Lamentava-se outro soldado, enquanto se sentava num tufo de folhagem que derrubava com o seu peso, como se adivinhasse já que o tempo de espera naquela posição de aguardar as novas ordens se iria prolongar.
Assim era. A frente da coluna tinha encontrado o nosso próprio rasto num trilho cruzado desbastado na mata algum tempo antes. Tínhamos efectuado 360º certinhos convencidos que andávamos num único sentido. Na frente os dois Alferes procuravam descortinar o que estava errado no rumo que seguíamos. Ninguém se entendia. Já ninguém acreditava nas bússolas. Os montes encerravam milhares de toneladas de minérios ainda por descobrir, que baralhavam as agulhas e nos deixavam cegos no meio da escuridão sem estrelas nem pontos de referência.
Durante algum tempo passámos a caminhar por intuição tentando adivinhar de que lado está o sol, quando alguma claridade parece acentuar-se numa determinada zona da copa da floresta cerrada. A outra opção é a de subir e assim ter alguma garantia de que nos elevamos e não continuamos às voltas lá em baixo, quando o 1020 está bem lá em cima. Depois, subindo, é natural que se aviste qualquer coisa que nos reoriente a posição em que estamos e a missão que trazemos. Era também sabido que a floresta se tornava menos densa à medida que se subiam os montes. Só que a terra mole e húmida acrescenta outras dificuldades quando se sobem inclinações íngremes quase impossíveis de vencer nalguns pontos.
Gatinhamos agora como lagartos à procura de raízes e das próprias espinheiras que nos dilaceram, na esperança de obter pé firme e algo a que agarrar. A G3 já vem às costas para libertar as mãos naquela luta de subir a pique e não cair para trás. Chegados a um determinado ponto era frequente uma escorregadela e um deslizar quinze a vinte metros abaixo, até que algum tufo mais saliente nos parasse aquele retrocesso indesejado e permitisse o recomeço, não sem o riso a medo do soldado que arrisca:
-  Eh mé Alferes, passou por mim com tanta pressa que parecia que vinha de patins... Na me diga que já se queria ir embora...?!
Nem respondo porque havia muito que se me tinham esfumado os últimos restos de humor e, no fundo, o que me apetecia era mesmo ir embora.
Tenho o camuflado ensopado e sujo. Uma mistura de suor e humidade das plantas que me salpicam como chuva. Começo a tentar imaginar como vou dormir logo à noite assim todo molhado. Numa espécie de alucinação, comum naquelas situações de privação e dificuldade, vêm-me à memória imagens de conforto e bem-estar. Um bom banho, roupa lavada e seca, uma cama limpa, uma boa refeição. Esforço-me por afastar aqueles pensamentos que me atormentam mais ainda, mas ocorrem-me outros. Tenho pela frente pelo menos mais três anos daquilo. Não vejo como suportar. Desconheço ainda a minha capacidade de resistência à adversidade e às situações de dureza, por vezes desumanas, que a guerra proporciona. O décimo arranhão do dia, dilacerando-me a carne e os pensamentos, acorda-me daquele turbilhão de cogitações e dúvidas, trazendo-me de volta ao Mufuque e ao 1020.
Por fim a mata abre-se um pouco e o sol abrasador reaparece. O suficiente para me secar o camuflado em pouco tempo. Paramos para almoçar dispondo-nos em círculo. Inicio a minha longa maratona de trinta meses de refeições de ração de combate no mato. Abro o saco e agarro a primeira lata que me vem à mão sem preocupações de escolha. Quero mais é comer qualquer coisa e descansar. Muitas nem trazem rótulo. Parece que com a pressa nem tempo tiveram de as identificar. Só depois de abertas se sabe o que contêm. De mistura com o conteúdo enigmático, há parcelas de gordura gelatinosa que afugentam a pouca fome que ainda me sobrava daquela manhã. Enfrento aquele meu verdadeiro primeiro almoço de guerra como se de um inesperado inimigo se tratasse.
Não obstante, não sou esquisito. Mas aquela mistela misteriosa e de mau aspecto incomodava um pouco. A fome não é muita. Ou melhor; não tenho fome. O cansaço sobrepõe-se à vontade de comer. O corpo desidratado solicita água a todo o momento. Sede sim, a sede é permanente. Felizmente havia água em abundância. Por vezes a água chegava para matar a fome ou para a enganar a sua ausência. As regras de segurança da guerra não permitem que se faça lume onde aquecer a ração de combate e diluir aquela espécie de peçonha camuflada. Há, no entanto, uma pequena subversão ao sistema de parceria com alguma adequação às necessidades do combatente. A partir de uma determinada altura da guerra, algumas embalagens passam a trazer dois ou três pequenos cubos de combustível sólido que permitem derreter aquela cápsula de colesterol onde se conserva uma dose minúscula de carne ou peixe calcados em cada lata.
Três pauzinhos espetados no chão equilibram um equilíbrio instável de permanente ameaça de um almoço perdido numa latinha cujo conteúdo cabe avantajadamente na boca de uma só vez. Por baixo, o pequeno cubo branco arde com uma chama azul quase imperceptível, lambendo o fundo da lata, quando o vento o permite, na fé, rapidamente perdida, de tornar um pouco mais tragável aquela espécie de dejecto encarcerado que nos fornecem para enganar a fome e ir mastigando a vida.
O Santos vem ter comigo para saber do meu estado e mandar umas bocas de amarfanhar maçarico derrotado nas primeiras cinco horas de sobrevivência no mato. Surpreende-o a minha técnica de aquecer a lata com os três pauzinhos e recomenda-me que consuma pouca água. Fico confuso. Como é que se pode pedir a alguém que consuma pouca água quando se sente quase morrer de sede a toda a hora.
- Até aqui a água não tem faltado. Mas podemos não voltar a encontrá-la nos próximos três dias. Diz-me com ar sério e convicto. Voltou-me a tentação de não acreditar no Santos, logo dissipada pelo completo desconhecimento das adversidades da guerra. Ali ninguém sabia, nem quando, nem se seria possível voltar encontrar água para reabastecer os cantis, embora em regiões montanhosas como era aquela, os riachos brotassem com muita frequência. Os caminhos é que podiam não condizer com o acaso dos riachos.
O almoço é breve. Do 1020 é que ninguém sabe. Há muitas conjecturas. Tantas quantos os vários montes que era possível avistar dali. Antes de nos colocarmos de novo em marcha sou convocado para a reunião dos Alferes e alguns furriéis, onde se ajustam opiniões do rumo a seguir. À semelhança das bússolas há opiniões para todas as direcções. Até o maçarico tinha uma ideia mas mandava-lhe o bom senso que seria melhor estar calado e ouvir. A decisão final é sempre de quem comanda, embora ordene um bom juízo que a decisão deve ter por base tudo o que se ouviu. Mesmo o que possa vir de um maçarico de camuflado novinho e milhares de teorias vazias trazidas de Mafra.
Para desagrado da maioria, é decidido voltar a descer aquele monte e voltar à floresta. Havia que encontrar o 1020, que ninguém garantia para que lado ficava. Na carta era evidente mas no terreno e ao nível do solo uma espécie de jogo de feira a ver quem acerta. O problema, e a maior dificuldade, é que, ao certo, ninguém sabia sequer onde estava.
Aparecem as primeiras lavras amanhadas pelas populações que dão apoio à guerrilha. Pequenas plantações de milho e massango (planta com espiga de grãos miudinhos e em grande quantidade) que se dispersam misturadas com as plantas selvagens que lhes servem de camuflagem quando os aviões as sobrevoam em busca de indícios de organização inimiga.
Sem grande convicção, alguns soldados vão destruindo a plantação à medida que vão passando. Outros passam ao lado e murmuram acenos de uma subversão de consciência que aqui e ali se ia construindo:
 - Deixa ficar. Também precisam de comer...!
O resto do dia é passado a subir e a descer montes em busca do objectivo. De vez em quando o Alferes Chagas de carta na mão solicita outras opiniões que possam esclarecer a posição em que nos encontramos. Timidamente, atrevo-me a apontar um determinado monte como sendo o 1020. Da leitura que eu fazia da minha carta aquilo parecia-me evidente. Daí que tenha ganho alguma coragem para alvitrar. Ninguém diz nada. Mas é óbvio que no espírito de cada um dos meus companheiros perpassa qualquer coisa como... olh’ó maçarico armado em chico esperto... ou mesmo em parvo…
Percebi e compreendi tudo isso. O que não sabiam era que, não obstante, eu possuía algumas armas que nenhum deles porventura tinha. A minha infância tinha sido passada em montes e vales a brincar aos índios e caubóis. Se havia algo que aqueles jogos meio loucos de percorrer durante um dia inteiro as cercanias e montes da minha aldeia em busca dos “inimigos” forjados a partir do “Cavaleiro Andante” e outras literaturas da época, me tinham proporcionado, era um sentido de orientação apurado cuja utilidade se viria a revelar de enorme importância na guerra. Ao longo dos trinta e dois meses e meio de guerra em Angola jamais me perdi. Uma glória pequenina que me dava algum conforto na segurança da guerra que eu buscava e me avivava uma infância recente de menino roubado ao tempo da meninice ainda tão fresco na minha memória de índio selvagem valente e invencível. Do mesmo não se poderão vangloriar alguns profissionais da guerra que era rara a vez em que saíam para o mato que não se perdessem por completo, dando origem a mil e uma histórias de episódios caricatos.
Escusado será dizer que, com naturalidade, não foi seguida a minha opinião. Eu teria feito o mesmo.
Começava a escurecer. Sobe-se um pouco mais em busca de um ponto elevado que nos dê mais segurança para pernoitar. Trago uma curiosidade imensa em ver como se passa a noite em pleno mato. A minha primeira noite de verdadeira privação de um mínimo de conforto.
Observo com atenção a forma como cada um resolve o seu problema e como todos se conjugam para um fim comum. O sistema tradicional, com o qual nunca me haveria de dar muito bem, era o agrupamento a três. Cada militar usa um poncho (uma capa de lona fina forrada a borracha de forma quadrangular com uma abertura ao meio donde sai um capuz) excelente para a protecção individual contra a chuva e por vezes o frio. O poncho vem preparado para duma conjugação a três resultar numa tenda, bastando orientá-la bem relativamente ao vento e à chuva, quando havia tempo para isso. Dois paus de suporte, dois fios e algumas estacas, tudo facilmente obtido no momento ali mesmo na mata, armam um lugar de pernoita para três em pouco mais de cinco minutos. O chão é coberto com capim, que brota abundantemente por todo o lado. A almofada é substituída pelo saco de lona que transportamos às costas. A faca de mato, instrumento imprescindível de múltiplas aplicações, escava alguma terra para tapar as franjas da tenda, obstando a que uma chuvada nocturna invada o seu interior, objectivo este nem sempre conseguido, quando a violência da chuva se sobrepunha à precariedade dos meios utilizados.
O pessoal é disposto em círculo, como sempre, e é feita uma escala de vigilância nocturna dividida em quartos de duas horas a cargo de um dos pelotões. Ao centro deste dispositivo fica o comandante da operação acompanhado pelos militares que transportam e operam os elementos essenciais para a segurança e operacionalidade do grupo: o rádio, o morteiro, a bazuca e o dilagrama (este último um invento português que lançava uma granada defensiva a uns bons cem metros, usando a própria G3 munida de uma munição especial).
A noite é estranha, mas o extremo cansaço acaba por vencer algumas tensões da guerra e outras tantas preocupações pelos variados ruídos de animais nocturnos que protestavam pela invasão inoportuna dos seus domínios. O sono é curto e entrecortado por pequenos sobressaltos de maçarico pouco habituado ao desconforto da mata e os sons novos que em nada se assemelham aos silêncios da aldeia.
O apagar das primeiras estrelas dita o acordar e arrumação rápida de toda a tralha. O inimigo tem todas as vantagens do seu lado. Se nos perseguiu no dia anterior, sabe onde pernoitámos, tornando-se fácil atacar ao alvorecer quando meio estremunhados nos preparamos para continuar. Torna-se pois adequada a movimentação rápida quanto possível enquanto o dia, ainda mal acordado, não dá vantagem a nenhuma das partes.
O pequeno-almoço é engolido em andamento e servido a partir do bolso do camuflado junto à coxa. Um pacote de leite com chocolate, uma bisnaga de doce e cubos de marmelada compõem a ementa. Algumas bolachas, entretanto desfeitas na sua maior parte e transformadas numa papa com a humidade e a chuva, completam o menu de mato.
O tempo mudou durante a noite e agora ameaça chover. De novo monte abaixo em busca do malfadado 1020. Por volta das 10 horas, uma chuvada forte abate-se copiosa sobre nós. Uma água grossa que nos transforma em destroços silenciosos de naufrágio deambulando perdidos naquele mar verde de folhagem agora reluzente e vergado pelo peso das ondas de chuva que sobre ele se abate.
Voltamos a entrar na floresta, agora com um tipo de vegetação bastante diferente formada por árvores enormes de copa frondosa e um emaranhado incrível de lianas e folhagem de vários tipos, tamanhos e formas. O chão é estranhamente liso e sem vegetação. O dia, embora pouco claro, transforma-se de repente em noite. A luminosidade é nula, razão pela qual não há vegetação no solo. Mas a sensação mais estranha é que apenas sabemos que chove com enorme intensidade pelo ruído da chuva lá bem no cimo da copa das árvores, porque sobre nós nem uma gota de água. O chão está completamente seco. Andámos horas naquela situação, deliciando-nos com o facto de sabermos que chovia copiosamente e nós sequinhos como se fosse um dia de Primavera. Os ponchos são arrecadados porque se tornam quentes e desconfortáveis.
Por fim uma pequena clareira. O ruído da chuva, já sossegado algum tempo atrás, é melhor esclarecido com o despontar de um sol luminoso e céu azul sem nuvens, que nos recebe resplandecente mal saímos daquele telheiro formado pela copa das árvores. A alternância é tão brusca que há alguma dificuldade na adaptação imediata à nova luminosidade. A clareira é breve e de novo a imensidão daquela mata de tecto denso que, agora sem chuva e com o sol brilhante e quente na sua copa, permanece escura como breu, uma sensação de novo complexa por se saber que o céu está limpo e o sol radioso mas ali volta a ser praticamente noite. Aquela semi-escuridão dura uma ou duas horas mais e baralha-nos por completo. A meio do percurso alguém garante que há ali algo de errado. O céu não pode estar limpo com um negrume daqueles. A sensação é ímpar. Por mais que se procure, olhando em redor, nem um minúsculo raio de sol penetra naquele autêntico escudo de folhagem. O efeito surpreendente é a breve prazo trocado pelo saborear daquela circunstância nova e agradável, porque não só o chão era pouco inclinado e limpo de vegetação e lianas de espinhos aguçados que nos rasgavam o camuflado e a pele, como a ausência de calor era uma dádiva para o corpo e para o espírito.
Contudo, quando por volta das 4 da tarde saímos finalmente daquela abóbada natural, nem uma nuvem no céu. Apenas o sol, ainda quente e muito festejado por todos, esquecidos que estávamos já dos seus efeitos por via daquela protecção de ocasião. Foi talvez a única ocasião em África em que vi tanta alegria pela presença do sol. Uma espécie de regresso da energia entretanto cortada.
Tudo se vinha conjugando para aumentar as nossas confusões e erros de cálculo. Continuamos ainda mais baralhados. Sem pontos de referência, naturalmente ausentes naquela autêntica cápsula em que vogámos praticamente durante todo o dia, a nossa escuridão é ainda maior, se bem que a bússola se mantenha agora bem mais serena. O norte que nos indica é que não nos convém nada. Se de facto assim era, andámos praticamente todo o dia em sentido contrário ao que se pretendia, como moscas tontas..., como se ouvia de um ou outro militar mais desesperado e... “cansado das desorientações do Alferes Chagas que, em Lisboa, havia de se perder no Rossio... querendo ir para os Restauradores!”
Mas desta vez a bússola estava certa. Nós é que não. O objectivo principal é abandonado por se tornar impossível de concretizar nos dois dias que restavam. É decidido iniciar o regresso, aproveitando para um reconhecimento das zonas por onde iríamos passar. Completamente desorientados naquela situação, faltava agora encontrar o rumo de casa e, essencialmente, o local combinado para o encontro com as viaturas, que nos levariam de volta ao quartel. Andávamos a meia encosta de montes não muito elevados. Ninguém se atrevia a sugerir que se subisse um metro que fosse para obter uma melhor vista e reorientar o caminho de casa. O extremo cansaço sugeria apenas opiniões de descer, não de subir. De voltar a mergulhar na mata densa e húmida do sopé da montanha ninguém nos livrava. Andar para Sul. Andar para Sul é o bom sentido. Onde vamos parar, logo se vê. Quanto à hora pré estabelecida para o reencontro com as viaturas que nos viriam buscar ao quarto dia de operação, havia que alterar os planos. O Chagas comunica pelo rádio dando indicações para que as viaturas não saiam, pois que nem sabemos onde estamos quanto mais encontrar o local combinado à hora aprazada.
A meio da tarde do quarto dia é finalmente possível calcular a nossa posição, embora sem grandes garantias de exactidão. Longe, muito longe da picada que permitiria encontrar as viaturas. Conclui-se que será melhor caminhar directamente para o quartel. Há mal-estar entre os militares por tanto calcorrear, aparentemente sem qualquer proveito. Ainda por cima nem conseguiríamos ser recolhidos, o que nos pouparia uns bons quilómetros a pé. Não temos água desde manhã quando passámos o último riacho. O terreno é agora plano e a vegetação pouco densa. Os nossos olhos de caminheiros perdidos percorrem ávidos o horizonte, que, longínquo, parece fugir à nossa frente, procurando descortinar um sinal que denunciasse a proximidade do quartel.
O sol já se escondeu. Nem uma brisa de ar.
Saindo da copa das árvores, uma leve neblina começa timidamente a formar-se nos vales que se avistam distantes. Um aroma de terra levemente humedecida varre suavemente o ar quente que ainda brota do chão ressequido. Paira no ar uma calmaria de denúncia de um braseiro já sufocado pelo cair do sol no horizonte e a humidade fresca exalada pelas árvores.
Caminhar para Sul. Tudo para Sul. A picada Stª Eulália-Estrada de Carmona tem dezenas de quilómetros. Nalgum ponto havemos de a encontrar.

Entramos no quartel pelo nosso pé já quase noite. Um fumo branco leve e preguiçoso sobe ao céu pela chaminé da cozinha espevitando o nosso sentido do olfacto em busca de uma perspectiva de refeição decente e reconfortante. O cansaço é extremo mas a visão do quartel alivia o peso do corpo, do saco e da G3. Não a mim, que me deixo ficar para trás e me faço mergulhar num mar revolto de pensamentos que se cruzam e entrechocam enegrecendo o meu futuro, no mínimo, dos próximos três anos.
Dói-me tudo. O corpo e a alma.
O Santos aproxima-se. Põe-me o braço por cima e diz.
- Escuta lá ó maçarico. Chegámos à conclusão que eras capaz de ter razão lá atrás quanto ao 1020.
Inchei um pouco, não obstante os quatro quilos e meio deixados para trás lá no Mufuque. Ou melhor. Inchei bastante; o suficiente para recuperar quase de imediato das mazelas que já mal sentia no torpor que me invadia todo o corpo.
Ripostei com a réstia de humor que ainda consegui juntar.
- Quando os marrecos se voltarem a perder é só perguntarem ao maçarico...
- Pode ser que esteja bem disposto e vos traga para casa.