domingo, 5 de abril de 2020


PARTE 3

270º Dia

... O vencimento era entregue com recibo e tudo, por via de regra assinado com uma cruz, sem Cristo mas igualmente dorida na carne e na alma, ou lambuzado com uma impressão digital de gordura, restos do último mergulho de mão na lata de peixe podre do almoço oferecido pela gerência...

O sol queimava sufocante e abrasador.
No terreiro enorme da fazenda havia uma fila com cerca de trinta ou quarenta negros que se alinhava junto ao casarão amarelo-torrado de traça colonial, uma espécie de castelo imponente que dominava as cercanias.
O edifício é enorme e circundado a toda a volta por uma varanda integrada na construção, coberta pelo telhado que se prolonga em forma de guarda-sol de aba larga e o protege da inclemência do fogo ardente que cai dos céus. Ao longo daquele autêntico passeio liso de cor grená-escuro gasto pelo uso, dispõem-se alguns bancos e cadeiras de repouso e, naquele dia, também uma pequena mesa com uma cadeira trazida do mobiliário interior, onde confina a fila de negros maltrapilhos e mal alimentados.
Era dia de pagamento. Por norma, a tropa do Mucondo, a quem cabia a protecção da fazenda, sempre que passava por ali parava e procurava inteirar-se da situação quanto a notícias de movimentos dos turras, deixando uma palavra de segurança e conforto apreciada por todos. Por vezes, como naquele dia, nem chegavam a parar os motores das viaturas. Uma troca rápida de palavras seladas com um aperto de mão ou, por vezes, apenas um aceno à distância, se a pressa era muita, cumpriam um protocolo de rotina a que ambas as partes já estavam habituadas.
O capataz, de alcunha “General Ramalho”, que nunca se conseguiu esclarecer donde provinha, admitindo tratar-se de uma espécie de título obtido no início da guerra nos anos sessenta, homem de grande corpulência e anafado, bigode à Clark Gable esmeradamente aparado, quase sempre de chapéu colonial enterrado na cabeça, dirige-se para as viaturas que tinham parado a alguns metros da casa.
Repentinamente inflecte a sua marcha e aponta, em passo apressado, para um negro que, cansado de estar de pé ali à torreira do sol sabe-se lá havia quanto tempo, se sentara no chão. De chibata na mão agride com alguma violência o funcionário – assim eufemisticamente tratados – enquanto o agarrava pelo braço e o punha de pé, sacudindo-o sem que este esboçasse qualquer tentativa de defesa. Uma espécie de boneco de palha nas mãos do “General”.
- De pé seu cão! Foi o que se percebeu da torrência de impropérios e prepotência despejados sobre o pobre coitado.
Todos assistiam em silêncio àquela cena, sufocando uma amálgama de revolta e dúvida momentânea em distinguir o verdadeiro inimigo que nos trazia ali. Por fim ouvem-se alguns murmúrios de agitação entre os militares. A violência é desmedida e pouco qualificável.
De repente, o Alferes que comandava a coluna salta da viatura de G3 em punho apontada ao capataz, denotando um evidente transtorno pela forma apressada como caminhava e a expressão que levava no rosto.
- Se você volta a fazer isso na minha frente despejo-lhe o carregador na barriga! Ouviu bem o que lhe disse? Gritava o Alferes de G3 em riste apontada à barriga do capataz e os olhos esbugalhados parecendo quererem saltar-lhe das órbitas.
Por momentos pensou-se que podia acontecer ali uma tragédia. O capataz também assim o entendeu pelo ar lívido e agitado com que o Alferes o interpelava. Por entre palavras de justificação e tentativas de apaziguamento mal balbuciadas pelo “General” o Alferes foi recuperando a calma, não sem continuar a avisar de forma clara de que aquele cenário não deveria repetir-se, pelo menos na sua presença, o que pareceu ter sido inteiramente apreendido.
Fez-se um enorme silêncio no amplo terreiro. Apenas o ruído monótono dos motores das viaturas cortavam o gelo daquele quadro de enorme contraste com o calor tórrido daquela manhã. O capataz, mal recuperado do susto, dirigiu-se de cabeça baixa para a mesa dando início aos pagamentos. A queixa haveria de chegar às chefias militares com o Alferes a ser admoestado e o assunto a ficar pelo conveniente esquecimento, embora o “General” tenha tido alguma dificuldade em esquecê-lo.

Aos poucos o Santos, com quem estabeleci uma relação de proximidade e convivência mais intensa, foi-me inteirando do funcionamento da fazenda e as relações de trabalho estabelecidas com os assalariados, facto que suspeito igualmente longe do conhecimento de muitos angolanos regressados a Portugal após o 25 de Abril, que por vezes se insurgem contra algumas destas realidades quando delas fazemos eco, negando com veemência a sua existência.
Há, no entanto, que salientar que estes actos menos dignos e reveladores de um espírito colonialista exacerbado destituído de senso e humanismo não exemplificavam a generalidade das relações estabelecidas entre brancos e negros em Angola. Eu próprio fui testemunha disso em múltiplas situações, onde o que falhava era a política central do estado e não a relação fraterna e de amizade que ao longo de séculos de foi desenvolvendo. Mas é necessário admitir que estes casos existiam um pouco por toda a parte onde as relações de exploração de trabalho nas grandes fazendas do Norte não olhavam a meios para a obtenção de lucros fáceis sem o menor respeito pelos trabalhadores assalariados. Não terá sido por acaso que foi naquela zona precisa que acabou mesmo por eclodir a luta armada pela emancipação e independência, em resposta directa a actos de prepotência e exploração desenfreada já devidamente relatados por autores que as presenciaram no tempo e contexto exactos em que ocorreram.

A fazenda era ali uma ilha perdida num imenso oceano de águas turvas e nevoeiros vários, impenetrável, desconhecida e praticamente isolada do mundo. Ali tudo podia acontecer sem que alguém viesse a ter conhecimento, salvo a tropa que existia para defender a fazenda e a sua exploração das imensas riquezas da terra. Os trabalhadores eram recrutados no Sul junto ao mar ou no interior próximo, região ainda pouco perturbada pela guerra, e trazidos em magotes acondicionados em camionetas de caixa aberta. Vinham de centenas de quilómetros de distância – perdendo o rumo e o sentido das distancias – sendo despejados naquele depósito de paredes inexpugnáveis erguidas pelos medos da guerra. Muitos por ali ficavam de geração em geração, trabalhando de dia e trespassando a noite em bebedeiras colectivas de alienação de quaisquer desejos ou projectos de futuro que nem existiam.
A cantina – conceito eufemístico atribuído a uma armadilha com telhado e alguns bancos, montada num canto do terreiro mesmo ao lado dos locais de pernoita dos assalariados – vendia essencialmente cerveja e arvorava-se no único oásis em centenas de quilómetros em redor, sendo proporcionado pelo patrão, num acto de tocante solidariedade e preocupação, que procurava proporcionar aos funcionários momentos de divertimento e lazer nas horas vagas. Uma espécie de “centro comercial” onde se pudesse espairecer o espírito e recarregar baterias, depois de mais uma jorna no corte do capim ou na apanha dos bagos amargos do café, que por fim tisnados da cor da pele do assalariado, partiam picada fora levando consigo os silêncios da morte lenta, que a tropa ajudava a emudecer. Uma espécie de ratoeira colorida que embebedava os sentidos e ajudava ao esquecimento do dia anterior. Uma antecâmara de um futuro vazio, sem data nem sétimo dia, nem projecto de dia nenhum.
Havia um vencimento mensal. Uma espécie de lenitivo de consciência ou cortina de nevoeiro que suavizava o peso e o sentido da presença colonial. Trinta e um escudos angolares mensais, alguns trinta e dois, representando em escudos do Puto (designação angolana da metrópole) menos vinte a vinte e cinco por cento, que era por quanto nos cambiava às escondidas o cauteleiro da Mutamba os escudos que trazíamos de Portugal. As relações de trabalho ali regiam-se pelas normas supostas em uso no continente e ilhas adjacentes. O vencimento era entregue com recibo e tudo, por via de regra assinado com uma cruz, sem Cristo mas igualmente dorida na carne e na alma, ou lambuzado com uma impressão digital de gordura, restos do último mergulho de mão na lata de peixe podre do almoço oferecido pela gerência. Para a maior parte, o recibo apenas saldava uma pequena parte da dívida amontoada na cantina que crescia mês após mês, qual algema invisível que apenas permitia trabalhar sem descanso e impedia o uso da liberdade de romper as grilhetas da submissão que os prendiam ao patrão e ao trabalho. De uma forma ardilosa, enredava-se o trabalhador numa teia de interesses de uma só feição, capaz de o prender para sempre a um ciclo vicioso, do qual apenas se conseguia desembaraçar pela lei da morte ou incapacidade total para o trabalho, como único atalho para a liberdade que só assim conquistavam. Uma prisão sem grades cuja fuga era impensável. Uma autêntica jaula cercada por centenas de quilómetros de terra escaldante impossível de transpor, na qual era necessário pagar para permanecer prisioneiro. As dívidas acumuladas na cantina conferiam ainda o lucro do patrão na venda das cervejas e um ou outro produto de primeira necessidade, subvertendo o velho rifão de dar com uma mão para tirar com a mesma, porque a outra brandia o chicote e mantinha a ordem de uma desordem que não existia.
Era o Santos que me explicava toda esta teia complexa de relações humanas e de trabalho. Era evidente a sua enorme dificuldade em aceitar as coisas tal como funcionavam ali, ainda por cima sob a protecção da tropa, que era algo que o transtornava de forma particular.
Voltámos a falar no assunto por diversas vezes e outras tantas nos confortámos mutuamente, convencendo-nos de que pouco ou nada podíamos fazer, senão apontar uma G3 à barriga bem nutrida dum capataz bruto e servil, no fundo também ele escravo dos verdadeiros proprietários da fazenda, esses sempre ausentes, viajando pelo mundo inteiro, tentando convencer jovens Alferes de que a aquela guerra estava ganha e que o inimigo afinal nem existia. Aos poucos fui entendendo que, afinal, o inimigo estava bem mais próximo de nós do que se supunha. Como fui paulatinamente assimilando os conceitos e preconceitos que me debitava o meu companheiro de viagem de Lisboa até Luanda. Como entendia agora a consideração em que me colocava, deixando-me até um convite para o visitar na sua mansão algures não sei onde, mas certamente distante, muito distante, daquele local perdido e quase desconhecido em pleno coração dos Dembos.
                                       
As rotinas na Companhia de Cavalaria do Mucondo iam-se sucedendo com o derrubar dos dias riscados no calendário porno-militar pregado no armário bem defronte da cama exacerbava um outro inimigo escondido que aos poucos ia dilacerando as leis ditadas pela natureza subvertidas pela guerra.
De manhã e ao pôr-do-sol, a cerimónia do hastear e arrear da bandeira, com a pompa e circunstância exigida por protocolos apatetados tendo em conta os lugares de desterro em que nos encontrávamos.
Tudo muito solene e por vezes meio caricato. Cornetim debitando notas mal amanhadas e pouco festivas porque o tempo para aprender música tinha sido mínimo e de utilidade duvidosa. Uma guarda de honra formada por quatro ou cinco militares de farda encardida e meio esfarrapada, com ar estremunhado de quico à banda tapando os olhos ainda meio ensonados e ramelosos, que apresentavam armas aprumando-se como podiam, secundados pelo Oficial e Sargento de dia que, de braçadeira no braço, testemunhavam o brio e a devoção daquela guarda em continência e de ar convicto.
Por último um militar que puxava o fio da honra da bandeira, erguendo-a lentamente ao som do toque militar de notas titubeantes até ao cimo do mastro erguido bem alto, ou fazendo-a descer inerte e exausta de proclamar todo o dia a soberania de Portugal sobre aquele lugar perdido na imensidão de África. Algo que nunca entendi. Porque razão a bandeira tinha que descer todos os dias para voltar a subir no dia seguinte. Poupar a bandeira à negrura da noite?
Idas à água, a cerca de um quilómetro de distância, transportada em bidões ferrugentos que a tingiam com uma leve e imperturbável coloração amarelada, que apenas escurecia um pouco mais o mijo da manhã. Jogos de cartas, em que os golos eram pagos em Whiskys, e de futeboladas, onde o trunfo era andar à porrada no fim do jogo por suspeitas fundadas dum pontapé errado nas canelas do companheiro quando seria mais ajustado apontá-lo ao inimigo que, astuto, jogava por fora do arame farpado. Noites de contar estrelas e desfiar luas a fio animando o desejo forte de que nos trouxessem sinais do outro lado do mundo, ou escutando o silêncio do mato vazio de vozes de animais nas cercanias que fogem para longe dos sons de guerra da tropa prenunciando a morte.
E o convívio de noites inteiras com o ruído abafado e monótono do gerador que nos ilumina a fronteira do medo erguida em três fiadas de arame farpado enfeitado com armadilhas de morte, separando-nos das sombras da noite sobre as quais construíamos o nosso imaginário de guerra, envolto em receios e dúvidas que nos matam lentamente as horas de tédio, riscadas num calendário que nos vai lentamente roubando a esperança e o tempo de vida.



300º Dia

... Agacho-me e contraio-me à frente para me espremer todo como se fosse um pano único encharcado e deixo-me ficar até que a última gota se me mija pelo fundo das calças...

            A guerra não pára. Só terá fim quando chegar o bom senso.
            Participo em mais duas operações das quais pouco há a contar.
            Se nos perdemos, o leitor e eu, por este rol de lembranças das peripécias da guerra, é apenas porque julguei com algum interesse, passados que são mais de trinta anos, lembrá-los a uns, e dá-los a conhecer a outros, que, afortunadamente, nunca tiveram ensejo de avaliar o que foram aqueles tempos. Sem saudosismos, sem lamúrias de sofrimento, sem arrependimentos de bravuras desajustadas. Mas também, e acima de tudo, sem esquecer.
            Também porque hoje me dá uma enorme vontade de sorrir, quando a TV acompanha os nossos soldados em guerras que assinalam o fim do que resta da nossa inesquecível epopeia no Oriente, cobertas por mil e um repórteres de som e imagem (sempre ávidos de captar as múltiplas sonoridades da adrenalina, que depois vendem a peso de ouro) exaltando o sofrimento e os perigos de três longos meses de afastamento da família, felizmente sem terem que dar um único tiro, nem tempo ou oportunidade para um... adeus e até ao meu regresso! Afinal, epopeias novas que fazem esquecer sofrimentos idos dos que morreram sem glória nem benefício, que o tempo se vai encarregando de varrer da nossa memória colectiva, para dar lugar à história nova dos feitos presentes e virtudes antigas, que enriquecem a nossa gesta valorosa de povo de muita guerra e pouco proveito.

            Cinco horas da madrugada. Estamos na picada que liga o Mucondo à célebre rota do café Carmona-Luanda.
            A operação prevê-se longa. O terreno é pouco acidentado e também não muito arborizado, conjugação pouco usual naquela região, onde habitualmente os montes e a floresta dominam a paisagem. A guerra não escolhe terreno. O inimigo usava por vezes o ilógico como arma de dissimulação. Acoitar-se onde seria menos esperado que o fizesse.
            As viaturas deixam-nos no ponto previsto para o desembarque e início da caminhada. Mal nos tínhamos embrenhado no capim, cerca das sete horas da manhã, estamos na margem de um rio com cerca de trinta a quarenta metros de largura, onde os primeiros da fila param.
            - Qual é a ideia? Perguntei a mim próprio já meio desconfiado e antevendo algo que me derrotava já ali antes de começar.
            - Vamos ter que atravessar o rio, dizem-me quando deixo transparecer alguma descrença.
            Tínhamos um quarto de hora de marcha pelo que me encontrava ainda fresco, com o humor já acordado e pronto para a função de aliviar ambientes pesados.
            - E os barcos...? Atirei com ar sério, jogando com o gozo duma alternativa que se me tornava penosa admitir mesmo antes de mais que confirmada.
            - Quais barcos qual quê meu Alferes. Vamos mas é a pé e a nado. Dizia-me um soldado convencido de que o Alferes maçarico falava a sério.
            Confirmavam-se as minhas mais que garantidas suspeitas. Nós tínhamos passado aquele rio nas viaturas meia hora antes através de uma ponte. Algo ali me estava a confundir. Mas então porque raio não ficámos logo do lado de lá do rio, escusando de o ter que atravessar agora meio apeados meio a nado?
- Além o nosso Alferes é que sabe. Apontava-me, com ar de desfaçatez cúmplice, um militar com o nariz e o queixo na direcção do Chagas, que voltava a comandar a operação. Não me conformei e fui até lá à frente perguntar.
Eram movimentos de dissuasão. Traduzindo: tentar aldrabar o inimigo...
- Se tivéssemos ficado do lado de lá, o IN já sabia mais ou menos para onde íamos. Assim, não lhes passa pela cabeça que vamos atravessar o rio um pouco mais acima, seguindo pela margem contrária àquela em que supostamente pensam que vamos andar, dizia-me o Chagas com ar de vitória antecipada.
Pois. Nem ao IN lhe passava isso pela cabeça, nem sinceramente a mim. Pelo que, aparentemente, fomos os dois bem enganados; o IN e eu.
Então, eu ali viçoso, lavadinho e sequinho para me aguentar quatro dias no mato e começo às nove da manhã por mergulhar na água fria; será que é para nos refrescarmos antes que o calor aperte?
- Não meu Alferes! Isto são tácticas do nosso Alferes Chagas. E não se admire se na volta não tiver que atravessar o rio outra vez para cá só para enganar a malta que nos vem recolher ou poupar água do banho lá no quartel. Confidenciava-me um outro militar arqui-inimigo dos processos e tácticas do Chagas, dando corpo a uma certa rivalidade que por vezes ocorria entre os valores e capacidades de cada pelotão. A água barrenta dá-me pelo peito, mas o camuflado já está completamente encharcado até ao colarinho.
Levo a G3 e o saco à cabeça procurando não ser arrastado pela corrente que não é forte, enquanto que com os pés vou tacteando o fundo do rio pedregoso em busca de chão direito que me mantenha o equilíbrio. Um engraçadinho sugere-me que tenha cuidado com os jacarés, pisando noutro sítio se por acaso o chão se mexer. Um outro dá continuidade a uma boa disposição, para a qual não descortino motivo, e alvitra que é muito provável que àquela hora os jacarés ainda estejam a dormir, pelo que o perigo ficava atenuado.
Saio que nem rede de pescador recolhida do mar, escorrendo água por todos os lados. Olho-me com dó e um desejo imenso de rebobinar aquele filme e voltar a ficar seco e cheiroso do sabão azul do banho da madrugada. Saem-me irreprimíveis golfadas de maldição que não consigo abafar, mas que guardo para mim num silêncio de louco que recusa partilhar o seu mundo com os outros de tão distantes que se encontram.
Com as mãos aperto as calças pelas pernas abaixo escorrendo a água e o lodo pescado no fundo do rio que me enchem de novo as botas de lona, qual sapato de cinderela transformado num ápice em sapo nojento saído da lama. Descalço-as e despejo aquela papa de água, terra e lodo que se escorre em pequenos fios de agulha formando picos que se vão desmoronando e me perfuram memórias das meninices de praias de castelos de areia, à sombra das ondas do mar, que na próxima volta da maré-cheia me desfazem os sonhos e os depositam no fundo do rio por onde navego agora perdido de raiva e ainda menino. Agacho-me e contraio-me à frente para me espremer todo como se fosse um pano único encharcado e deixo-me ficar até que a última gota se me mija pelo fundo das calças. Volto a calçar uma sopa de pão de açorda em cada pé e ergo-me com uma vontade enorme de testar o humor do Chagas, espetando-lhe uma ou duas farpas que me deixem um pouco mais aliviado daquela carga de água que me ensopava até aos ossos.
- O melhor agora é descermos o rio, voltarmos a passar a ponte lá em baixo e retornar para a outra margem. Depois voltamos a atravessar o rio. Se formos depressa até pode ser que os jacarés ainda estejam a dormir e nos facilitem a travessia. Assim é que o inimigo ficava mesmo baralhado... ó Chagas.
Não obtive resposta, salvo aquele doloroso e repetidíssimo “... Tá no a andar!”, que nos punha a caminho de um outro abismo desconhecido e do próximo “... Alto! Paramos aqui. Montar segurança...”
O dia é seco e muito quente. A paisagem é um tanto árida e de poucas árvores, contrastando com o habitual nos Dembos de vegetação luxuriante e poucas abertas. Haveria de mudar um pouco mais adiante.
Continuo resmungando pela margem do rio acima por onde seguimos maldizendo aquele mergulho matinal meio estúpido, tentando adivinhar quando voltaria a estar seco e mais confortável. A roupa range-me no corpo, os pés arquejam dentro das botas ainda ensopadas.
- Daqui a meia hora está sequinho e pronto para ir ao baile, meu Alferes, dizia-me o “Montijo”, sempre de piada afiada que acompanhava com largo sorriso enfeitado por meia-dúzia de dentes em falta, uns vencidos pela cárie, outros jazendo cravados num poste que o amparou num acidente de motoreta.
Continuei resmungando a graça dos trinta minutos. Mas, com um rigor pouco comum nas coisas da guerra, trinta minutinhos depois de reiniciada a marcha eu estava efectivamente seco, remoendo agora algumas saudades de uma recente frescura anterior. Era como se todo eu tivesse sido mergulhado numa máquina de secagem rápida que me tivesse espremido da cabeça aos pés. A roupa estava seca mas dura e incómoda como se impregnada de goma. O sol queimava. Era um autêntico braseiro. As sombras esporádicas de árvores dispersas eram bênçãos para o corpo, as quais procurávamos serpenteando, qual cobra-cascavel no deserto em busca das sombras raras enquanto procura alimento.
Trazíamos um reforço de cantis com água, uma opção tomada a partir da leitura da carta que nos referia poucas linhas de água no percurso que íamos tomar. Era, pois, de esperar que os reabastecimentos de água fossem muito pouco frequentes ou eventualmente nulos. Uma linha de água na carta não significava um curso de rio ou riacho capaz de nos reabastecer. Tudo dependia das chuvas ou da época do ano. Tanto podiam ir cheios como estar secos, o que acontecia com frequência.
O momento de deixar o rio, cuja margem seguimos durante vários quilómetros, foi de embebedar de água e encharcar a cabeça e o próprio quico, que um quarto de hora depois estaria seco que nem um carapau depois de quinze dias de seca ao sol.
Mergulhamos no capim como quem iça uma vela e se deixa vogar mar fora sem saber o que o espera no horizonte remoto e desconhecido do lado de lá. São percorridos muitos quilómetros de um sol insano que nos fustiga sem piedade alternando com a bênção misericordiosa da frescura das noites.

Há dois dias que andamos sem encontrar água.
Dois longos dias sem inimigo nem água, sendo que o primeiro não nos faz falta nenhuma. O sol não dá tréguas e continua a derramar ondas de calor chamejante desde que nasce até se esconder no horizonte vermelho, num presságio de promessa de novo inferno para o dia seguinte.
As reservas de água carregadas no rio há dois dias atrás estão esgotadas há muito. Vem-nos à memória, em jeito de miragem de uma onda de frescura, a malfadada travessia do rio dias atrás às sete da manhã. Há quem verta um resto de água quente na tampa do cantil para molhar apenas os lábios, voltando a guardar religiosamente as gotas que restaram, como se de ouro ou uma relíquia se tratasse. Há quem se atire para o chão e jure que não sai mais dali, para logo mudar de ideias mal a coluna preguiçosa se põe de novo em marcha em busca de um oásis que ninguém promete.
A língua fica pastosa e dificulta o falar. A saliva é praticamente inexistente. É como se viéssemos a mastigar cola. Os lábios ásperos e gretados ouvem-se roçar um no outro e queimam.
- Água! Ouve-se na frente.
- Água!
Passos apressados, um ânimo que parece renascer não se sabe donde, um ir destapando um cantil que ferve à cintura vazio e seco.
- ... Água?
A “água” é um charco pestilento calcado por dezenas de pegadas de animais, mistura de lodo e algum líquido que borbulha à superfície, onde pululam uns bichinhos minúsculos de pouco mais de meio centímetro, movimentando-se rabiando o corpo todo, e que em pequeno costumava ver nas valetas de água parada da minha aldeia misturados com os girinos, e a que se dava o nome de saltitões.
Muitos não resistem. Procuram uma zona de maior profundidade, três a quatro dedos, inclinam o cantil e enchem-no até onde é possível, procurando enxotar as pequenas jangadas de porcaria pestilenta que se precipitam em direcção à boca do cantil. Com uma bola de algodão tapam o bocal do outro cantil e vertem-lhe aquele líquido meio espesso que vai deixando o algodão empapado de lama e saltitões que se debatem como nós pela sobrevivência. Juntam-lhe um daqueles comprimidos militares que garantem destruir a maior parte das doenças (além do fígado e dos rins) que pululam nas águas podres – teoria jamais comprovada, mas que ajudava a beber qualquer porcaria para não morrer de sede – e agitam o cantil com grande intensidade procurando aumentar o efeito do químico. Alguns nem dão tempo sequer a que se derreta e apazigúe alguns dos milhentos micróbios que se preparam para nos devorarem a nós. Outros, na dúvida, enfiam um segundo comprimido, por suspeita de que aquela mistela é capaz de o merecer, ou por receio de que será mais certo as doenças contidas na água derrotarem elas mais facilmente o poder da pastilha que ao contrário.
O sabor é horrível mas só param depois da quarta ou quinta golada, não vá o saborear antecipado corromper a vontade de matar a sede. Alguns resistentes parecem preferir o risco de morrerem à sede, mas têm algumas armas escondidas em que confiam e que hão-de utilizar na hora certa e no momento apropriado.
Cai a noite estrelada e fresca. O desânimo é enorme. No silêncio murmuram-se maldições.
- Agora só faltava os turras atacarem, ouve-se.
- Se trouxerem água até a G3 lhes dou, carago. Que puta de vida. Que mal fiz eu a Deus? Andou a minha mãe a criar-me com tanto carinho para isto.
Ninguém tem vontade de comer. A sede tira qualquer vontade de mastigar ou engolir o que quer que seja. No mato morre-se de sede. Dificilmente se morre de fome. A água até a fome engana.
A boca tem um sabor estranho, o raciocínio imobiliza-se, o pensamento tem um único sentido: chuva, rios, mar, vinho, cerveja, água, água...
Na escuridão que já nos envolveu há duas ou três horas, vislumbro três vultos que deslizam em silêncio saindo duma tenda afastando-se ligeiramente da zona de concentração, sendo claro o cuidado que põem em não fazer o menor ruído para não serem vistos. Tanto quanto me é dado a perceber, um pouco mais além agacham-se os três e ficam imóveis. A situação desperta inicialmente a minha curiosidade. Há militares que ficam de sentinela de noite guardando o sono dos companheiros que dormem. Mas não assim. Normalmente são quatro que se dispõem formando um quadrado, alguns metros para lá das tendas dispostas em círculo. Admito uma segunda eventualidade relacionada com a satisfação de necessidades fisiológicas, cujo uso tinha regras. Mas em grupo não me parecia apropriado. E para outras, essas sim de grupo... o momento não me parecia o mais oportuno...
Desligo-me da situação porque nem me apetece indagar. Disponho-me a tentar dormir.
Cinco minutos depois.
- Meu Alferes, meu Alferes! Já viu? Sussurra-me o “Montijo” entrando de cócoras na tenda em grande agitação.
- O quê? Pergunto, sem me mexer nem abrir os olhos. Achei que na altura me podiam até atacar que a vontade de me mexer seria nula.
- O Serrano, o “Galinhas” e o Gama estão ali atrás das tendas de joelhos a rezar para que chova. O meu Alferes já viu o que é que a merda da falta de água faz? Os gajos piraram. Têm os miolos cozidos do sol.
- Não me parece “Montijo”. Na hora do aperto a fé é a última arma para algumas pessoas. Você não acredita em Deus? Disse, continuando de olhos fechados perguntando-me a mim próprio por que carga de água trazia eu aquele tema para a conversa numa altura daquelas.
- Nunca fui de ir à missa, meu Alferes. Só me lembrei de Deus quando estive quase a patinar naquele acidente em que me ia partindo todo contra um poste. Ia lá deixando os dentes todos. Já lhe contei essa, não contei? Depois curei-me e olhe, nunca mais me lembrei disso outra vez.
- Pois é “Montijo”; quando a vida começa a andar para trás é que as pessoas se lembram de Deus. É assim como quando faz trovões. Depois, passa a tempestade e só se voltam a lembrar quando trovejar de novo.
- Não tinha que morrer. Senão tinha morrido mesmo, não acha? Eu só me lembrei. Mas não pedi nada. Eu nunca acreditei em Deus. O que tiver que ser é... e seja o que Deus quiser...
- Claro, “... e seja o que Deus quiser...”.
 - Vamos mas é dormir ó “Montijo”, porque assim nem sentimos a sede. Amanhã à noite estamos em casa.
O “Montijo” acomoda-se na tenda virando-se de costas para mim enquanto abafa um riso fungado que se lhe escapa pelos dedos que comprimem o nariz.
- Meu Alferes! Tenho a impressão que já está a pingar...
- Não goze “Montijo”, não goze.
- Os gajos piraram. O “Galinhas” então mesmo sem sede já é marado.
Na mata às sete horas já se dorme. Naquela noite seriam umas nove quando nos dispusemos a tentar descansar, perturbados como estávamos com a falta de água que nos martirizava de uma forma difícil de traduzir por palavras. Os tormentos da sede confundem-nos de tal forma o raciocínio e os sentimentos que o que fica na memória é uma espécie de dor vazia de imagens cuja recordação tráz mal-estar e um enorme desejo de não lembrar.
Duas da madrugada. Dou um salto e agarro-me à espingarda com o “Montijo” em grande alvoroço dentro da tenda.
- Meu Alferes, meu Alferes; porra chove para caraças; o cantil, o cantil!
Uma das características do clima de África é a alternância brusca entre um sol radioso ou uma noite estrelada e uma chuvada diluviana em menos de uma hora, para logo depois tudo serenar.
O alvoroço era indescritível. Inventavam-se mil e uma maneiras de apanhar a água que caía generosamente do céu. Fizemos uma goteira a partir do bico dos ponchos que formavam a tenda e a água corria a fio ali mesmo à nossa frente. Alguns soldados dançavam em grande algazarra à chuva agarrados uns aos outros, perante a escamação do Chagas que lembrava em vão a necessidade de observância do silêncio e das normas de segurança.
- Eu quero que os turras se f....
Era o tipo de resposta que invariavelmente se conseguia ouvir, numa perfeita loucura que subvertia os conceitos e preconceitos, comandos e hierarquias, que no escuro de uma noite de chuva intensa sofregamente abençoada se misturavam e confundiam.
A água sabia à borracha dos ponchos e trazia um leve travo salobro do suor que se lhe entranhava durante o dia quando transportado às costas dobrado e atado ao saco. E tudo porque ninguém se atreveu a perder as primeiras gotas que caíram e o lavaram de três dias de poeira e transpiração transbordante. A chuva podia terminar de um momento para o outro. O céu escuro não deixava adivinhar a dimensão da chuvada.
Choveu toda a noite. Foram bebedeiras de água e de pragas devolvidas ao sossego dos espíritos saciados da guerra da sede. Qual alambique destilando o melhor álcool, cada cantil sabia melhor que o anterior, depois de bem lavados os telhados da tenda que nos abrigava. Ninguém mais dormiu. Não só porque todos queriam beber até não poder mais, mas também porque a chuva inesperada encharcou tudo, entrando pelas tendas adentro.
Meditativo, o “Montijo” está sentado à porta da tenda de pernas cruzadas e olhar fixo no fio de água que escorre para dentro do cantil.
- Porra meu Alferes! E choveu mesmo. Diz sem tirar os olhos da água que corre límpida para dentro do terceiro ou quarto cantil que enche.
- Agora é que você começa a ir à missa ó “Montijo”.
- Náh! O meu primo era um beato do caraças que até ajudava à missa. Mesmo assim não deixou de se enfiar por uma ribanceira abaixo com uma bebedeira que nem queira saber. Olhe, ainda ficou com menos dentes do que eu.
- Mas ó “Montijo”; isso foi da bebedeira.
- Ó meu Alferes; e Deus naquela altura também estava distraído ou com os copos, não? Ao que consta, Deus não dorme... nem bebe. Só que...
Pronto. E assim se tresmalhou mais uma ovelha que se admitiria poder constituir-se num sério candidato ao rebanho de Deus, passada que foi aquela provação de tão grande aperto e sofrimento.
Talvez na próxima, quando Deus e os homens ousarem desafiar as convicções de um “Montijo” que entende que a chuva nem sempre cai quando Deus quer ou manda.


310º Dia

... Já fugi do palco da minha derrota.
Há um tiro isolado que ecoa longamente no vale.
Um tiro a que, de olhos no chão, ninguém responde nem dá sinais de medo ou cuidado, porque transporta uma mensagem de dor ou o fim dela. Um tiro rogado em silêncio pelo próprio derradeiro sopro de vida a que se destina. Que me estremece e trespassa a consciência, qual trovão que ensurdece os meus sentidos e me queima qualquer razão. Que me sinto atingir em cheio no peito e derrubar o que me sobra de ânimo já de si desfeito. Que me angustia e me deixa por momentos à deriva e sem norte...

Faltam duas semanas para terminar o meu estágio e regressar ao Puto. O Capitão quis-me presentear com uma última operação, talvez para compensar aquele período em que estive doente.
Há dois dias que vagueio nos domínios do Júlio. Lembram-se?
Caminhamos num vale com uns cem metros de largura ladeado por montes de pequena altitude cobertos por densa vegetação. O vale é plano. A terra é escura. Há lavras por todo o lado. Milho crescido muito bem tratado, sinal de que nos encontramos em pleno território inimigo. A tensão cresce. Tudo pode mudar de um momento para o outro. Pela primeira vez encontro-me em território claramente assinalado pela presença inimiga. Abandonamos o percurso aberto que trazíamos pelo meio das lavras porque nos expomos demasiado e nos tornamos num alvo fácil. Caminhamos agora mais protegidos pela orla da mata com uma visão perfeita sobre toda a extensão do vale.
Há uma ordem brusca para parar e agachar vinda da frente. Silêncio.
Permanecemos assim por breves momentos que me parecem uma eternidade. Sustenho até a respiração procurando eliminar todos os ruídos que me impeçam de ouvir os sons que vêm da frente. Depois respiro ao de leve, controlando o ruído do ar que me sai e entra lentamente pela boca e nariz. A fila é muito longa. É impossível ver o que se passa bem lá na cabeça da coluna.
Uma informação digital corre célere toda a fila e chega até mim em forma de V.
Vitória? Mas ganhámos o quê? Questiono-me eu num solilóquio absurdo quebrando aquela onda hertziana que me devia atravessar e continuar no militar que me seguia.
- São dois, meu Alferes, são dois turras – esclarece o militar que se me segue, captando a informação e apercebendo-se da minha indecisão. A onda encalhada em mim é restabelecida.
Abano a cabeça na maior censura e tento desculpar-me a mim mesmo com a enorme tensão em que me encontro. Não havia ainda vitória. Eram dois os inimigos que se dispunham a uma derrota contra os cinquenta de nós que os esperávamos acoitados na mata.
Há um ou dois gritos que traduzo de interpelação de alguém vindos da frente e que ecoam no silêncio absoluto do vale. Segundos depois um tiro, outro e um terceiro que restabelece o silêncio, depois de ribombar em ecos que estouram na minha cabeça.
Fico mais perto do chão. Não há notícias. Correm apenas boatos. Dois já ficaram. Parece que ficaram dois.
De repente uma rajada, outra, tiros, muitos tiros, um tiroteio incrível ali a cinquenta, setenta metros à minha frente sem que eu veja o que quer que seja. Mergulho num pedaço de tronco derrubado que encontro à mão e tento perceber o que se passa. Comigo ficam alguns militares que se abrigam esperando que lhe transmita ordens. Não sei quem dispara, não vejo o inimigo, ouço dezenas de tiros que se agrupam num único trovão que dura vinte, trinta segundos e é interrompido a custo pela voz de alguém que grita: pára, pára, pára! Mas os tiros continuam por mais alguns momentos, embora dispersos e isolados.
- Ninguém dispara! Grito para os militares que ficaram comigo.
- Ninguém dispara!
Tenho o dedo trémulo no gatilho supostamente pronto para o uso que for requerido e espreito encolhido tentando descortinar algo que se mexa e nos ameace. A fila fazia uma curva e desaparecia por entre vegetação e pés de milho impedindo de observar o centro dos acontecimentos. Fez-se um silêncio que parecia não ter fim. Um silêncio incerto lentamente transformado em calmaria podre. Olho-me em volta. Sinto-me perdido e vulnerável como um grão de areia no deserto. Reparo que, no meio de todo aquele tiroteio, a minha G3 tinha ficado com a patilha de segurança na posição de travada. Tinha-me esquecido de a destravar. Era assim como ir para um duelo e esquecer de meter as balas na pistola.
- Vais longe! Comento em voz alta para mim mesmo quando dou por ela, perante o olhar interrogativo do militar que está ao meu lado, pensando que o critico. Com a coronha da G3 apoiada no chão e com um joelho em terra, fico por momentos com a cabeça assente no braço que segura a arma, remoendo a minha falha que procuro colocar no cimo da lista das minha preocupações futuras no sentido de não voltar a cometer o mesmo erro.
Há dois elementos do lado inimigo atingidos. Afinal, apenas aqueles dois simbolizados num V de vitória que não lhes sorriu.
Nunca me dei bem com o sangue vertido fosse donde fosse. Nem da galinha que a minha mãe aprontava em menos de nada nos domingos de festa lá da aldeia. Sabia que havia ali bem perto alguém atingido por balas de guerra, terrivelmente perfurantes que deixavam um pequeno orifício de entrada e estraçalhavam tudo à saída. O meu primeiro impulso foi de ficar por ali à espera que tudo passasse e regressássemos às casernas, onde me esperava um papelinho mágico que me mandava de volta a Mafra ao remanso das guerras de brincar.
Há ainda um enorme sentimento de insegurança após aquele tiroteio. Vagueio de um lado para o outro procurando ordenar o meu grupo e mantê-lo vigilante dada a posição desfavorável em que nos encontramos, já perfeitamente localizados pelo inimigo. Disfarço o melhor que posso a luta interior que se trava dentro de mim. Dou por me afastar instintivamente do teatro dos acontecimentos. O mínimo que me esperava no meu futuro militar era pelo menos uma boa meia-dúzia de situações daquelas, onde a morte estaria presente ou deixaria o seu véu sombrio envolver os espíritos de quantos ficavam à sua mercê. Talvez fosse melhor que me habituasse já à sua presença, garantindo o início de uma relação de rotina que nos endurece os sentimentos e nos torna insensíveis à dor, ao medo e aos sofrimentos próprios e dos outros. Há responsabilidades e condutas que me vão ser exigidas. O treino a que me sujeitam não deve cingir-se apenas à aprendizagem do modo de fazer a guerra, mas também à eventualidade das suas consequências ou à desumanidade das suas armas e circunstâncias.
Decido por me obrigar a ir à frente, apontando-me uma baioneta às minhas pernas que ainda trémulas se recusam a caminhar naquela direcção. Há militares que se movimentam de arma em riste procurando garantir a segurança contra um inimigo invisível mas, sem dúvida, presente e pronto para nos aniquilar e vingar os seus. De coração em sobressalto, chego ao local onde a agitação é enorme. No campo de milho estão dois corpos caídos a cerca de trinta metros um do outro. Um de bruços, inerte. O outro, gemendo, apoia-se num cotovelo. Tem as vísceras na outra mão que aconchega no regaço. Olha-nos com distanciamento como quem não espera mais nada além da morte e a deseja. Balbucia palavras que procuro entender mas não alcanço.
Nem sotaque do Norte, nem linguarejar do Sul, ou cantata ondulante das searas alentejanas. São palavras que brotam em sonoridades novas e sentidos ínvios, que se me erguem estranhas naquela terra distante, província desmedidamente maior que a mãe pátria, que não cuidámos de aportuguesar, ao menos na língua, que nos fizesse entender as dores do corpo e da alma ou mesmo os desejos de não querer ser português assim.
O Chagas está algo transtornado e movimenta-se nervoso.
- Não podemos ficar aqui mais tempo. Em minutos caem-nos em cima e estamos totalmente desprotegidos.
À minha chegada o Chagas resume o que se passou na esperança de que, entre todos, encontremos uma solução para a situação criada. Afinal tratava-se de três elementos da população, dois homens e uma criança, que vinham pelas lavras. Traziam às costas utensílios agrícolas que foram confundidos com armas. Foi-lhes dada ordem para pararem à qual não obedeceram e fugiram. Foram abatidos. A criança foi deixada fugir. Deviam vir acompanhados de perto por guerrilheiros porque houve posteriormente disparos vindos da mata que deram origem àquele tiroteio todo. Nem há tempo para ir ver se lá ficou algum ferido ou morto. Temos que sair daqui.
O Chagas movimenta-se nervoso e assustado de um lado para o outro. Tem um ar lívido estampado no rosto, marcado pelo sentimento de responsabilidade de comandar aquela operação. Pela obrigação que lhe cabe de tomar decisões. Decisões que têm a ver com a vida ou a morte. Aquelas que me vão caber num futuro próximo e por mais três longos anos.
- E agora o que faço àquele desgraçado que ali está!? Nem pensar chamar um helicóptero porque a esta hora já não vêm.
Os hélis tinham uma margem de luminosidade de segurança sem a qual não operavam.
- Se fica ali assim vai ser um sofrimento atroz.
Ninguém encontra soluções que possam ser apresentadas de viva voz e em boa consciência. Há trocas de olhares silenciosos e cúmplices que ninguém se atreve a traduzir melhor por palavras. Projecta-se em cada um de nós uma alternativa animal e fria que apenas encontra sentido na insensatez da guerra. Uma solução grotesca de resgate de sofrimento a troco de nada, a não ser por fim a paz apodrecida do silêncio inesperado e o sossego das tormentas da vida. De olhar fixo no chão, deixo também o meu doloroso recado e afasto-me derrotado e miserável. Acenam-me com alguns lenitivos de consciência que procuram vingar a perna do Guia desfeita no Mufuque três meses antes. A memória do Guia não me serve de desculpa nem me fortalece o ânimo. Talvez porque nem cheguei a conhecer o Guia. Talvez porque nunca privei com ele. Tentam colonizar a minha consciência transformando derrotas retumbantes em vitórias que apagam sonhos de futuros de melhor vida e os transformam em pesadelos negros e sem retorno. Mundos de promessas e esperanças sem fim, desmoronando-se em ruínas de pó que nos alucinam e nos peiam a vontade de discernir e libertar de nevoeiros cegos que nos envolvem, teimando em cobrir-nos e escurecer a nossa consciência de navegantes perdidos.

Já fugi do palco da minha derrota.
Há um tiro isolado que ecoa longamente no vale. Um eco que parece não ter fim e que se prolonga nos nossos sentidos. Um tiro a que, de olhos no chão, ninguém responde nem dá sinais de medo ou cuidado, porque transporta uma mensagem de dor ou o fim dela. Um tiro rogado em silêncio pelo próprio derradeiro sopro de vida que o implora. Que me estremece e trespassa a consciência, qual trovão que ensurdece os meus sentidos e me queima toda a razão. Que me sinto atingir em cheio no peito e derrubar o que me sobra de ânimo já de si desfeito. Que me angustia e me deixa por momentos à deriva e sem norte.
Fico em pé enquanto mo permitem os restos de dignidade que em mim ainda campeiam desordenados e sem rumo. Há um silêncio frio e negro de sepulcro que emudece tudo. Um sol exausto que também se deixa abater e cai vencido num horizonte distante de uma vergonha recente mas já podre. Emergem já sombras frias em prenúncio de um escuro fúnebre que se prepara para envolver todo o vale e enredar-nos a consciência.

Há uma vontade enorme de fugir e me esconder, de abraçar e esquecer. Há um “Montijo” que me diz que mesmo que a chuva caia e me mate a sede de dois dias sob sol inclemente não irá à missa porque Deus por vezes descansa quando mais dele precisamos.

O tempo de aprendizagem estava prestes a chegar ao fim. Não sem uma passagem pelo Batalhão sediado em Zemba, a cerca de três horas de viagem.
A sede de um Batalhão é um local que fervilha de vida de uma forma diferente duma Companhia. Mais gente, mais movimento, mais vida. Alberga uma comunidade de oficiais e sargentos três ou quatro vezes mais numerosa.
A minha passagem por ali tinha por objectivo de formação conhecer aquela realidade e continuar a aprender os mil e um fundamentos de uma organização militar em campanha. Ali essencialmente sentir o envolvimento de um pequeno centro de comando operacional.
O corpo de Alferes tratou de praxar o maçarico com a conivência do comando, desde que as situações não se revelassem demasiado cáusticas, a fim de não molestar a imagem do futuro Capitãozinho, de tão frágil que deveria parecer. Pequenas coisas que quebrassem a monotonia dos dias que, lentos e fastidiosos, mediavam as operações no mato.
Entrei na escala de serviço de Oficial de Dia ao Batalhão, uma experiência que, dadas as circunstâncias, não teria grandes oportunidades de repetir. Era pois oportuno que o fizesse para continuar a testar as minhas capacidades e melhorar a generalidade dos meus conhecimentos militares. Se bem que não fosse bem esse o fundamento essencial daqueles quatro meses no mato.
Por coincidência “calhou-me…” ficar de serviço logo no dia 31 de Dezembro, dois ou três dias depois de ali ter chegado. Um dia em que ninguém gostava de cumprir aquela obrigação, porque a passagem de ano era um motivo de grande festividade, em que o mais agradável seria não ter qualquer responsabilidade e comemorar sem restrições. Ficar de serviço já era uma estopada pouco apetecível. Ter que o fazer numa noite daquelas, muito menos ainda.
Por outro lado, usando como exemplo um ou outro caso ocorrido nos anos de guerra já decorridos até àquela altura, era sempre tido como possível um ataque do inimigo nessa noite, pelo que o trabalho de vigilância era redobrado e a responsabilidade de manter os soldados da guarda acordados e atentos, um trabalho extra e um fardo acrescido. O Natal e a passagem de ano eram sempre tempo de medidas de prevenção especiais ou redobradas. De maneira que um maçarico caído assim do céu vinha mesmo a calhar. Cumpri sem grandes falhas e terei mesmo sido exemplar na execução das normas de segurança relativas a um eventual ataque inimigo.
Não tinha vícios adquiridos na monotonia dos dias quentes do aquartelamento arrefecidos a cerveja gelada e whisky e crescia-me uma enorme vontade de cumprir e aprender bem. O Comandante prevenira-me.
Tenha atenção que esta noite é especial e vai ser um tanto agitada. A segurança do pessoal que vai comemorar a passagem do ano fica à sua inteira responsabilidade.
Não preguei olho nem um minuto. Calculei que até o pessoal colocado nos postos de vigilância haveria de querer comemorar a meia-noite de qualquer forma. O inimigo seria secundário naquela noite. O problema foi que o inimigo que eu esperava vindo do exterior se me revelou bem dentro do quartel.
Foram bebedeiras com cânticos e desacatos até ao sol nascer. O maior problema é que numa altura daquelas o respeito pela hierarquia militar esvaía-se nos vapores do álcool conjugado com o transe da pressão da guerra e do isolamento. Tornava-se complexo ajustar algumas regras para que aquela noite passasse sem consequências de maior, mesmo quando o Margão (Furriel corpulento e amigo de uma boa briga) não prescindia de atirar um companheiro pela janela fora, bem à moda do Faroeste, estilhaçando vidros e a madeira meio ressequida pelo sol. Ou um outro militar, talvez influenciado pela fauna da região, se tenha lembrado de subir ao mastro da bandeira, gritando a plenos pulmões às quatro da manhã que só sabia subir e não era capaz de descer. Ou ainda, com maior ou menor dificuldade, em deitar um Alferes que às três da manhã queria à viva força pegar num unimog para ir até Luanda (a umas centenas muito largas de quilómetros) visitar uma amiga, ao mesmo tempo que um Furriel teimava em ficar nu na parada porque não tinha medo de ninguém e muito menos dos turras.
Não obstante, tudo se foi resolvendo a contendo até ao clarear do dia.
A minha maior atrapalhação tinha, no entanto, ocorrido logo às oito horas da manhã do próprio dia 31 na formatura da parada para o içar da bandeira, naquele dia com a presença de todos os oficiais, sargentos e praças do Batalhão.
Naquela altura começavam a aparecer as primeiras manifestações dos objectores de consciência, corporizadas ali por um jovem aderente às Testemunhas de Jeová, que se vinha recusando a prestar culto ao que quer que fosse que não ao seu deus.
No momento da subida da bandeira todos os presentes tomavam a posição de sentido, determinada pelo toque do cornetim, fazendo continência ou apresentando arma, como era o caso da guarda. Mas o nosso jovem mantinha-se impávido na posição de descansar, cumprindo os mandamentos da sua religião. O caso estava referenciado por todos, excepto pelo Alferes maçarico ali caído fazia dois dias. O comandante apercebeu-se da situação e, em silêncio enquanto subia a bandeira, dirige-se ao jovem pela parte de trás da formatura onde este se integrava. A solenidade do momento, com a continência e devoção à bandeira por parte de todos os presentes, é interrompida por um enorme alarido do comandante que já abanava o jovem intimando-o a tomar a posição de sentido, enquanto lhe ia gritando ordens com esse fim e o obrigava a unir as pernas sem quaisquer resultados. O militar mantinha-se renitente e desobediente, não obstante alguma severidade na actuação do comandante.
Repentinamente vem a ordem.
- Oficial de Dia! Este homem já para a prisão!
Lesto, interrompo a minha continência e dirijo-me célere ao comandante para tomar o preso. Mal pego o jovem pelo braço, que dócil se deixava levar, sobressalto-me perante toda aquela gente com um pequenino problema, mas que me esmagava sob o olhar de um quartel inteiro.
Prisão? Mas onde diabo ficava a prisão?
Eu chegara dois dias antes. Não conhecia a maior parte das dependências do aquartelamento, sendo que a prisão era coisa que eu nem admitia que houvesse sequer por aquelas bandas.
Naqueles segundos passaram-me pela mente uma catadupa de pensamentos. Entre eles, o de perguntar ao próprio preso onde era a prisão, ideia que abandonei rapidamente por a entender ridícula e despropositada. Por momentos fiquei deveras atrapalhado. Quando já desesperava, despontou-me por fim uma luzinha bem lá no fundo dos conflitos que me trespassavam, fulminado que me sentia já por centenas de olhos que me observavam.
- Sargento de Dia! Este homem para a prisão! Ordenei firme… e aliviado.
Foi como se, à beira dum abismo, tivesse acordado dum pesadelo. O Sargento de Dia, por certo, havia de saber onde era a prisão.
Retomando a minha posição de sentido, a cerimónia havia continuado imperturbável, segui pelo canto do olho a direção que seguia o preso e o seu carcereiro de ocasião, não fosse aparecer-me por ali um outro caso do mesmo género, sem que me restasse outro Sargento de Dia que me salvasse. Pelo menos a direcção da prisão eu ficava a saber. Depois logo perguntava o sítio certo, dobrada que fosse a esquina.
Ninguém deu por nada, tendo ficado a ideia de que o tinha feito com consciência, usando a normal hierarquia militar apropriada à circunstância. Quando contei a minha atrapalhação foi o gozo geral e o mote para novas ideias de outras praxes, que felizmente não tiveram tempo de pôr em prática, também porque procurei precaver-me suspeitando de tudo o que me parecia menos racional, o que em termos militares nem sempre se me afigurou fácil.

Pedro Cabrita
Ex-capitão miliciano
Formado no Mucondo por Taxa Araújo.

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