segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

"Como eu entrei na Guerra"


Capítulo 5º

Estremoz. C.Cav. 2692- Batalhão 2909

Corria o mês de Março de 1970, num domingo à tarde apresentei-me no Quartel de Cavalaria de Estremoz para tomar conta do meu novo posto de trabalho, na Companhia de Cavalaria 2692. Fui na véspera da apresentação pois não tinha transporte de manhã.
O Oficial de Dia à Unidade a quem me apresentei, informou-me que só na 2ª feira estaria alguém da companhia para me receber e, quando lhe perguntei onde iria dormir, orientou-me para um antigo convento (São João de Deus), local onde poderia escolher um quarto, que iria ser o meu enquanto durasse a minha estadia em “estágio”.
E lá fui eu direitinho ao anexo à procura da suite, onde deixei toda a minha bagagem, não sem antes preparar a caminha com roupa de cama que desencantei já não me recordo onde.
Sem preocupações com a dormida, comecei por dar uma volta por Estremoz para me ambientar acabando por “assentar arraiais” no Águias de Ouro, café restaurante da elite da cidade e também paradeiro dos oficiais e sargentos da Unidade.
Conversa puxa conversa, copos e mais copos e acabei por conhecer o Pina Silva e o Gomes (o Amaral não tenho a certeza se também estava), contratados igualmente pelo Exército Português para assumir as pastas de enfermeiro e transmissões.
Foi de facto uma noite do caraças e recordo com saudade as palavras do Pina Silva quando lhe disse que era de Montemor-o-Novo:
- És de Montemor, então deves conhecer o Barreiros e o Barroso?
Quem não conhecia o Barreiros e o Barroso. Eram de facto amigos meus de escola, ambos enfermeiros no Hospital Militar de Évora, local onde o Pina Silva iniciou a vida militar.
- Eu ainda sou mais bêbado que eles!
Bêbado não sei mas um pouco passado dos carretos era de certeza (na terra dele tinha a alcunha do maluco da Farinha Branca) e, graças a essa realidade, conseguimos fazer passar uma mensagem que ainda hoje é recordada em Estremoz.
Topem só. Em pleno Águias de Ouro um de nós gritava “Se vires uma cobra e um alentejano o que é que tu fazes” o outro respondia de imediato “Eu matava o Alentejano e deixava a cobra”. Quando a malta começava a reagir indignada o Pina Silva com a sua conhecida calma levantava-se e dizia “Alto. Eu também sou Alentejano”.
Foi uma noite do caraças e só quando o Águias de Ouro fechou recolhemos aos nossos aposentos, devidamente instalados num opel record que não tinha onde cair morto e com uma enorme disposição para furar.
No dia seguinte de manhã, com uma enorme ressaca e de novo instalados no opel record, entramos pela portão de acesso das viaturas e no meio da neblina (estava um nevoeiro do caraças) avistámos o que poderia ou não ser o nosso batalhão.
É não é, de indecisão em indecisão quando saímos “do monte de latas” todo o pessoal tinha desaparecido e a parada estava completamente vazia, não havia viva alma. Óptimo, voltámos de novo pra dentro da viatura e dormimos até próximo da hora de almoço, pois fomos acordados pelo comandante da unidade que nos perguntou se pertencíamos ao batalhão e,após a nossa confirmação, nos pediu desculpa pela interrupção da soneca.
À tarde já formámos com a nossa companhia, mas a apresentação ao Capitão Taxa Araújo só foi efectuada ao 2º ou 3º dia, com o Sargento Pires a andar de pelotão em pelotão a perguntar onde raio estavam metido os cabos milicianos aramistas, pois ainda não se tinham apresentado na companhia.
A vidinha corria-me às mil maravilhas. De dia dava instrução de condução aos meus condutores e mesmo sem GPS (na altura não havia tais modernices) não errávamos uma única tasca das aldeias e povoados à roda de Estremoz. À noite era Águias de Ouro ou desenfianços até Montemor, à minha casa, ou a Veiros a casa duns familiares do Ribeiro, local onde o Gomes quis beber por um garrafão que encontrou numa arrecadação e ingeriu uma valente golada de azeite que até ia vomitando as tripas.
Esta vida de “cavaleiro” (não me podia esquecer que mesmo sem cavalo eu integrava um batalhão de cavalaria) estava a dar cabo de mim e a minha sorte foi eu querer retomar um hábito antigo. Ir à saída da missa…
Lá fui eu com o Gomes à igreja, que era mesmo ao lado da porta de armas do Quartel, e boca daqui piropo dacolá, conseguimos convencer a V… e a L…., era assim que se chamavam as duas moças, a passear connosco no jardim público da cidade.
Acabaram-se as noitadas de copos e passámos a estar de “plantão” à porta da escola à espera que as nossas estudantes nocturnas saíssem. A protecção proporcionada levava-nos a passar por um túnel mesmo por detrás do edifício onde dormíamos e que tinha uns recantos mais que apropriados para a “marmelada”. Que maravilha…
A vidinha corria normalmente até aos exercícios finais da companhia que foram programados para a Serra de Ossa.
Foi aí que eu consegui mais ou menos alguma credibilidade junto do Taxa Araújo, comandante da companhia, pois foi-me distribuída a organização do aquartelamento no que diz respeito à distribuição e montagem das tendas de campanha e as portas de entrada, que de facto não é pra me gabar mas ficaram mais ou menos à maneira.
Pra mal dos meus pecados o Gomes, cabo miliciano aramista meu amigo e responsável pelas transmissões decidiu e muito bem, que tinha que aprender a conduzir. Vai daí pediu cá ao Alentejano, cabo miliciano ferrugento e responsável pela gestão das viaturas, que o ensinasse a conduzir.
O Gomes tinha cá um poder de argumentação que até parecia que tinha sempre razão e vai daí, na primeira oportunidade, estava com o cu assentado junto ao volante do jipe land rover que me estava distribuído e, eu ao seu lado, a ministra-lhe alguns ensinamentos sobre a forma de dominar a máquina.
Das duas uma, ou eu não sabia ensinar coisa nenhuma ou o Gomes não tinha cabeça para uma aprendizagem demasiado rápida.
Foi o bom e o bonito. Em vez da primeira o “transmissões” enfiou a marcha atrás e com uma aceleração forte enfiou dentro da tenda em que dormíamos. A nossa sorte foi que um rádio serviu de calço e o jipe estacou antes de se precipitar serra abaixo, o que seria uma verdadeira tragédia.
Todos os pelotões estavam em operação (simuladas claro) e no aquartelamento improvisado apenas estavam os aramistas (condutores, mecânicos, cozinheiros, padeiros etc., etc..) que transformamos de imediato em costureiros e munidos de fios, cordas e arames reconstruímos a tenda.
Foram noites de pesadelo as que passamos na Serra de Ossa até ao final dos exercícios com medo da “barraca” vir abaixo. O pior era quando o nosso grande amigo Sargento Pires entrava a rastejar pra dentro da mesma e erguia-se, amparado ao poste central, com o cantil de bagaço na mão a dizer-nos que estava na hora de tocar a sentido.
Meu deus como nós afinávamos com os beços (lábios tinha o nosso capitão) no clarim (cantil) até que o calor nos subia à cabeça e vencia o frio da serra alentejana.
Foi com profundo alívio que no último dia desmontamos a dita cuja, que depois de enrolada foi atirada para cima da viatura que a transportou para a arrecadação de material.
Já nos safemos, foi o desabafo colectivo…
De volta a Estremoz, depois de fazer o espólio em que fiquei com praticamente todo o equipamento com utilidade futura, recebi as divisas de furriel e lembro-me de ter saído duas ou três vezes pela porta de armas para receber a “continência” da praxe.
Voltei a Estremoz um dia antes de tomar lugar no comboio que me foi depositar junto ao cais, onde vi pela primeira vez o Niassa, que me levou sem escala até Luanda.
Já não havia motivo para desalinhar. A sorte estava lançada.
Clemente Pinho – Ex-Furriel Miliciano Mecânico Auto. C.Cav. 2692

2 comentários:

  1. Pinho! Estou a apreciar as tuas crónicas. Demoraste a pegar na canhota mas colocaste-a logo em rajada.
    Pessoal, não percam as cenas do próximo capítulo!

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  2. Caro Dias é com prazer que vejo o teu comentário. Eu não estou a escrever de empreitada pois como alentejano que me prezo gosto de levar tudo nas calmas. Um caracol pra mim é um bicho rápido de mais.
    Eu tenho estas histórias há muito tempo escritas só que nunca as tinha torndo públicas.
    Um abraço do Pinho

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