domingo, 5 de dezembro de 2010

"Como eu entrei na Guerra"



Capítulo 4º

Cabo Miliciano/E.P.S.M.

Que maravilha, o Alentejano era Cabo Miliciano Mecânico Auto e para possibilitar a vingança do “Sabão Amarelo” ia continuar a sua vida de militar em Sacavém.
Abro um pequeno parêntesis para dar uma ideia do indivíduo com quem eu tive que lidar até ao final de Fevereiro de 1970, com um pequeno intervalo de 30 dias porque fui destacado para o CICA 3 em Elvas, para tirar a carta de condução.
“Tipo alto, forte, cabelo ruivo (razão da alcunha) completamente rapado de lado fazendo lembrar um puro soldado alemão. Como 1º Sargento da Secretaria toda a orgânica da Unidade lhe passava pelas mãos, nomeadamente as dispensas, toques de ordem, distribuição do pré, alimentação, escalas de serviço, etc., etc..
Dava-se ao trabalho de vir todos os dias da semana fazer o render da parada, de forma a não perder o controlo do império que construiu.
Os bufos, arregimentados a troco de dispensas, passavam-lhe toda a informação necessária para fazer prevalecer um autoritarismo amparado por um profundo conhecimento do regulamento de disciplina militar, que sabia de cor e salteado.
Se até os sargentos e oficiais temiam o “sabão amarelo”, eu resolvi que devia ficar no meu cantinho de forma a passar completamente despercebido. Era de facto o maior desafio que tinha que enfrentar até que o destino me pregou uma valente partida.
Comecei a entrar na escala de serviços, que fui cumprindo com a ajuda dos meus camaradas mais antigos e a vidinha corria-me de feição. Adorava quando me calhava fazer de “Polícia de Unidade”, em dia do recebimento do pré. Era um fervilhar de soldados à procura de mudar o óleo no olival pegado ao quartel, onde era frequente alguém gritar “fujam p…. que vem aí a ronda”. Dava de facto gozo ver correr p…. e soldados, que por vezes só paravam na vedação da auto-estrada.
Estava eu de Sargento de Dia dentro da unidade e seguindo o que normalmente os meus camaradas faziam, não efectuei a formatura de recolher aos cabos milicianos que em Sacavém era obrigatória.
Na manhã do outro dia, quando fui apresentar na Secretaria o relatório, achei estranha a forma como o 1º Sargento (o tal de sabão amarelo) me fez apressar a assinatura do mesmo e a sua interrogação sobre a existência ou não de faltas na formatura de recolher.
Até parece que foi hoje, pois ainda na minha memória guardo as palavras que me foram dirigidas.
- Então nosso Cabo Miliciano já assinou o relatório? Não faltou ninguém à formatura de recolher pois não?
Eu argumentei:
- Não meu primeiro não faltou ninguém e já assinei o relatório onde não registei qualquer ocorrência.
O tal de sargento recolheu rapidamente (o que eu estranhei) o relatório da minha frente e pregou-me, é assim o termo, com uma comunicação que tinha chegado do Hospital Militar registando a entrada de um Cabo Miliciano pertencente à E.P.S.M. de Sacavém, atropelado entre Moscavide e Sacavém.
Por azar meu o camarada atropelado não tinha dispensa de recolher e foi então o bom e o bonito.
- Gritou, barafustou comigo e acabou por me dizer que eu tinha mentido em relação à formatura de recolher, que não a fiz e que portanto tinha uma desobediência muito grave, razão porque ia de imediato fazer a participação da ocorrência.
Pegou numa folha de papel azul e de facto começou a participação onde depois de registar a minha identificação, efectuou a primeira pergunta:
- Fez ou não fez a formatura de recolher aos Cabos Milicianos?
Eu de facto naquela época era mesmo desalinhado e respondi:
- Não meu 1º Sargento, não fiz de facto a formatura de recolher aos meus camaradas. Podia mentir e dizer que alguém tinha respondido por ele, mas prontamente seria desmentido pelos “bufos” que tem às suas ordens. Concordo com a formatura de recolher aos Cabos Milicianos desde que também sejam incluídos os Sargentos Milicianos, pois fazemos exactamente os serviços que eles fazem, caso contrário vai ter que estar sempre a fazer participações de mim sempre que eu esteja de serviço.
Encerrada a participação foi a mesma colocada à minha frente para eu assinar e eu depois da ler com todas as calmas recusei assinar, argumentando que faltava inserir a minha argumentação em relação à falta cometida.
O “Sabão Amarelo” até mudou de cor. Não alterou a participação e eu não assinei.
Com um curriculum já bastante agradável cheguei à formatura para receber o pré e quando estava a estender a mão para receber a “esmola” que me pagavam por serviços relevantes à Pátria (agora pagam muito mais a parasitas que não fizeram metade do que eu fiz) ouvi o 1º Sargento dizer ao Comandante da Escola “o homem da participação é este” e seguidamente a informação de que me deveria apresentar, após a distribuição dos dividendos, no seu gabinete.
O Comandante da Escola, que era um Capitão, que reagiu muito mal ao facto de eu não ter assinado a participação, disse-me tudo como os malucos mas como eu nunca fiquei calado e argumentei sempre, acabou por me dizer que o castigo que me iria aplicar seria mais para dar uma satisfação ao “Sabão Amarelo” .
Um mês todo de Sargento de Dia à benfica. Alinhei tanto de encarnado que agora não os suporto…
Passado este contratempo tinha que me meter noutro. Incitação a um levantamento de rancho no refeitório dos sargentos.
Comia-se mal, mesmo muito mal, dada a forma em como o “ Sabão Amarelo “ desviava o dinheiro destinado a alimentação.
Toda a gente comentava, não havia nem cão nem gato que não barafustasse mas lá iam comendo a porcaria que nos era servida, até um dia….
- Hora de almoço. O “rancho” para Sargentos tratava-se de “estilhaços de bacalhau” com batatas (vulgarmente denominado de bacalhau à braz), só que tal como das outras vezes mais parecia argamassa usada na construção para assentar tijolos.
Das palavras passamos aos actos e a comida do dia começou a ficar colada nas paredes do refeitório, nalguns casos até com prato de alumínio agarrado e, juro que não fui o primeiro a atirar mas devo ter sido o segundo.
Foi o bom e o bonito. Comandante, Sargento e muitos mirones apareceram no refeitório e as identificações começaram a ser anotadas.
Eu, Cabo Miliciano Clemente Marques Pinho, com o nº mecanográfico 143670/69, chamado novamente à presença do Comandante como principal instigador de um acto considerado para a época de “revolucionário”.
Mais uma vez a minha argumentação e a minha frontalidade me safou e saí do gabinete do Comandante com a certeza que a minha mobilização para Angola se mantinha (não me mandavam para Guiné talvez com medo que eu acabasse com a guerra) , mas apenas com mais um mês de Sargento de Dia à “Benfica”. É possível eu gostar dos encarnados? Claro que não….
Começaram a surgir melhorias importantes na alimentação graças a frontalidade de um 2º Sargento de nome Magalhães, que foi de facto quem mandou a primeira pedra (prato à parede), e que teve a coragem e honestidade de se assumir como responsável pelo incidente.
O meu 2º mês de castigo foi cumprido em Outubro de 1969, mês de eleições, em que todas as Unidades estavam de prevenção e não havia dispensas para ninguém, sendo até obrigatório que toda a tropa se apresentasse nos seus aquartelamentos.
Tal situação proporcionou-me uma possibilidade enorme de me baldar que eu soube, novamente graças à minha irreverência, aproveitar.
Durante o mês de prevenção apercebi-me da presença de três camaradas da minha terra que pertenciam aos quadros da Escola do Serviço de Material e que eu nunca tinha visto, nem sequer numa formatura de recolher.
Falei com eles e descobri o segredo.
Era tão fácil, pois era só abdicar do dinheiro do pré mais o valor das refeições. Lá vou eu direito à Secretaria pedir dispensa para o mês de Novembro e foi mais ou menos assim:
- Meu primeiro eu necessito de pedir dispensa para o mês de Novembro e, se possível, a começar já depois de amanhã que é Sexta-feira, pois tenho que ir ajudar os meus pais a apanhar a azeitona (qual azeitona qual quê, só se lha dessem).
A resposta do Sabão Amarelo:
- Nosso Cabo Miliciano lamento mas não pode ser, já dei muitas dispensas para Novembro e na sexta-feira é dia de pré, você tem que estar para o receber.
Já sabedor da tramóia argumentei:
- Meu primeiro o dinheiro do pré e das refeições é uma gota de água comparado com o que os meus pais vão pagar se eu não tiver para os ajudar, quero lá saber do que tenho a receber.
De imediato me mandou ir buscar os 30 toques de ordem, que eu já levava preenchidos e assinados, foi só carimbar e lá ia de abalada a caminho de Vila Franca de Xira, para a apanhar boleia na portagem, não sem antes passar pela “Casa dos Courates” e comer uma boa sande acompanhada por um “penalty” do tinto.
Este procedimento repetiu-se nos meses de Dezembro de 1969, Janeiro e Fevereiro de 1970 e de Sacavém, apenas recordo com saudade as rondas aos Bares, ao Olival e os bailaricos na Bobadela e no Prior Velho.
O “Sabão Amarelo” viu-se assim livre de mim, com algum lucro claro.
Voltei novamente a alinhar…
Clemente Pinho – Ex-Furriel Mecânico Auto da C.CAV. 2692










2 comentários:

  1. Caro Clemente, e no meio disso tudo que culpa tem o Benfica?
    Quero uma resposta, ordem de um ex-soldado!...

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  2. Caro júnior de facto o benfica não tem culpa nenhuma só que de encarnado fiquei farto. Comecei logo muito cedo na escola em que algumas das faltas eram a vermelho. Enfim vamos esquecer...

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