segunda-feira, 30 de maio de 2011

Estórias do Mucondo

No operação Crato o Luís (1º cabo do 1º pelotão) contou-me o episódio da sua sede numa das muitas operações que juntos realizámos, não posso deixar de o relatar ainda que seja incapaz de lhe dar a graça que teve contada pelo seu protagonista, mas em todo o caso aqui fica para que não esqueça.

A estória do Luís , uma entre muitas das histórias do Mucondo.

Naquela operação, depois de dois dias no mato, sob o calor escaldante e húmido da mata ,o Luís deu por vazio o seu cantil de água, já noutras vezes tal tinha acontecido mas agora a sede tornou-se verdadeiramente insuportável, um suplício constante ou porque o calor fosse muito ou porque a operação decorria num terreno muito acidentado com constantes e penosas subidas aos montes logo seguidas de cuidadosas descidas não fosse alguma queda atirá-lo para o tronco de alguma daquelas gigantescas árvores com espinhos de vinte a trinta centímetros no tronco sempre prontos a espetaram-se nalgum incauto que ousasse sequer encostar-se à sua majestade : a árvore de espinhos.

Era muita a sede e, rapidamente, cresceu e tornou-se insustentável, ninguém lhe dava água pois se ainda tinham alguma, por terem sabido dosear o consumo e dessa forma também tinham doseado a sede, negavam tê-la, mas alguém mantinha ainda, não se sabe como, o cantil cheio de água.

O Luís aproximou-se do Gouveia (soldado do 1º pelotão) e pediu-lhe um golinho de água, a nega veio rápida, não tivesses bebido a tua tão depressa, não te posso dar água. Ó pá dá-me só um golinho. Não.

Passado um bocado, o Luís volta à carga: é pá um golinho não te vai fazer falta, tens o cantil quase cheio e nós ainda hoje havemos de encontrar um rio e encheremos os cantis, pelo amor de Deus dá-me só um golinho que já não aguento mais a sede. Não, já te disse que não posso dar a minha água, tivesses tido mais cuidado.

O Luís já não sabia como havia de dominar aquela sede cada vez mais macabra, por mais que quisesse deixar de pensar em água mais a sua mente insistia na água, ah se pudesse agora beber da água do poço , lá na terra, no "puto", sempre tão fresca, tão saborosa. Meu Deus, que pensamentos, não posso pensar em água, tenho de ter atenção não vá haver algum contacto com o IN, tenho de andar atento para não “lerpar”. Bolas a sede não me deixa tenho de encontrar uma saída.

Ao fim do dia, como era habitual, tentámos encontrar um lugar que reunisse condições para a pernoita, normalmente escolhia-se um local que nos acolhesse de modo a ficarmos fora do alcance de eventuais contactos nocturnos com o IN, fazia-se um círculo, dispersavam-se os homens de modo a que ficassem juntos apenas dois a dois , no máximo três, e nunca mais distantes que uns dez a vinte passos dos dois próximos grupos, no centro do círculo por vezes ficavam os graduados, nunca juntos, mas acompanhados de um ou dois homens.

Foi encontrado o local e o círculo da pernoita foi formado, o Luís quis ficar próximo do Gouveia que , entretanto já andava desconfiado com as atitudes do Luís. É pá, fico ao pé de ti, pode ser que tenhas consciência e ao menos me deixes molhar os dedos para os passar pelos meus lábios, sinto-os ressequidos. Se pensas que por ficares comigo vais ter água tira o cavalinho da chuva, podemos ficar juntos, somos da mesma secção, mas olha: vai pedir água a outro.

A noite caiu rápida , como sempre, a escuridão envolveu-nos a todos.

Por mim, não tinha medo da noite , tinha mais medo do dia, a noite com a sua escuridão protegia-nos, ninguém nos podia ver, além do mais estávamos deitados no chão posição de defeso contra qualquer ataque com armas de fogo. A noite era amiga em todos os sentidos.

Rapidamente toda a gente adormeceu. Toda não, pois estava montada a segurança, os grupos que formavam o círculo iam-se rendendo ao longo da noite na vigília da segurança.

O Luís soube aproveitar bem a noite, estendeu o pano de tenda ao lado do Gouveia, no grupo também ficou o Cruz, eram três, o Gouveia ficou no meio, defensor da sua água, fez do cantil a sua almofada, meteu-o mesmo debaixo da cabeça. Para o Luís esta atitude foi decepcionante, alimentava a esperança de que mataria a sede durante o sono, sempre pesado do Gouveia. Este não tardou em adormecer, um sono profundo de justos, sonhava já com os seus campos alentejanos, verdes do trigo ondulante na brisa da planície, chegavam-lhe os aromas das estevas e do alecrim, a guerra tinha ficado para trás, como era bom o sono, como era bom dormir! Mesmo que no chão húmido da mata.

De súbito o Luís teve um clique: chegou-se mais e mais para junto do Gouveia, este já ressonava, devagar, devagarinho, muito devagarinho, com muito jeitinho, ergueu o braço e colocou a sua mão esquerda junto da cabeça do Gouveia, encostou-a, aguardou por algum sobressalto do Gouveia, nada, um pouco mais, a mão do Luís foi-se infiltrando entre a cabeça do Gouveia e o cantil, cada vez mais dentro desse espaço de pressão, um pouco mais, o Gouveia mantinha o seu ressonar, agora com mais força, que sonhos teria, talvez sonhasse com a namorada lá tão longe, que seria dela, manteria aquele calor ardente do último beijo, já morto de saudades, atirado sem vergonha na Gare de Alcântara ainda antes do Gouveia marchar em direcção às escadas do Niassa que o levaria para terras tão distantes quanto misteriosas?

O único sonho do Luís era chegar à água, se lá chegasse, tinha o mundo na mão. Pouco a pouco, foi aumentando a pressão de baixo para cima sobre a cabeça do Gouveia e eis que já não sentia nas costas da sua mão o frio do cantil verde. O sono do Gouveia continuava profundo o que não admira dado que estava extenuado das caminhadas do dia.

O cantil estava liberto, mas isso não era tudo, o Luís tinha de com a outra mão, e só com ela, agarrar o cantil, tirá-lo daquele sequestro improvisado pelo Gouveia, tinha ainda que abri-lo e beber a água, tudo sem retirar a mão que sustinha a cabeça do Gouveia. Tudo sem retirar o Gouveia dos devaneios dos seus sonhos.

Ah , mas a sede , pelos vistos aguça o engenho e a habilidade, com muito jeitinho o sequioso Luís conseguiu retirar o cantil abri-lo e, meu Deus, que prazer dá beber quando se tem sede, o Luís bebeu e bebeu, bebeu mais de meio cantil, deixou alguma água para que o Gouveia não desse pelo embuste, a sua vontade era mesmo bebê-la toda.

No dia seguinte, já na caminhada da operação, o Gouveia deu pela falta da água, lembrou-se então que tinha dormido com o cantil debaixo da cabeça, ora bolas deitei o cantil, tinha-o mal fechado e o resultado foi que a água se escoou enquanto eu dormia. Bolas.

Luís, olha, afinal nem que queira te posso dar água, ontem não rolhei bem o cantil, durante a noite ele estava tombado e a água foi-se.

Estavam na conversa, gostosa para o Luís que não abria mão da sua marosca eis que , diante dos olhos de ambos surge um rio dos muitos que percorrem os Dembos, com uma corrente límpida de água que a todos encheu os cantis e matou a sede de três dias de longas e penosas caminhadas pelas matas de Angola.

(Esta história foi-me contada pelo Luís, 1º cabo da minha secção, no dia 28 de Maio de 2011, e recriada por mim)

(Há quarenta anos que não vejo o Gouveia, decerto nunca veio às operações anuais, quem souber dele, diga alguma coisa)

José António da Silva Tavares


1 comentário:

  1. Esta é uma daquelas cenas que me deu gozo ler. Com efeito, só com a persistência e bastante ratice do Luís e a paciência do Gouveia poderia proporcionar este desfecho. Não sei explicar o motivo, mas o facto é que o Gouveia, não sendo do meu pelotão, perdia-se em longas conversas comigo, pelo que penso que esta história encaixa perfeitamente. Mas que bela história meus caros Luís, o verdadeiro autor, e Tavares que a recreou.
    E quantas mais histórias estão à nossa espera? Vamos a isso! Escrevam, ou falem ao Tavares para dar forma escrita às vossas memórias.
    Carlos Dias

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