terça-feira, 31 de maio de 2011

Ida para a intervenção

A nossa passagem para a intervenção passou-se nos seguintes termos, se a minha memória está certa.
Nós todos estávamos absolutamente convencidos que se a primeira parte da comissão fosse um sucesso teríamos assegurada uma segunda parte mais ou menos pardisíaca, numa praia qualquer, com sanzalas perto. A certa altura o comandante foi chamado a Luanda e soube-se então que em vez do tal paraíso e por razões militares que desconheço, propunha-se que fossemos para a intervenção. O comandante terá respondido que tinha que "auscultar os seus homens" e para tal convocou uma reunião com todos os capitães de companhia mandando-lhes averiguar junto do pessoal o que pensavam sobre o assunto. Na nossa companhia houve unanimidade total: ninguém quiz ir para a intervenção. Foi essa a opinião que o capitão transmitiu na tal reunião. Porém todos os outros capitães se manifestaram, em nome das suas companhias, favoravelmente e portanto o nosso destino final ali ficou traçado. Lembro-me muito bem do enorme desgosto que tive quando o capitão, regressado de Zemba nos deu a "novidade". Acabou por não ser tão mau como se pensava mas em todo o caso foi nesse período que tivémos as nossas duas baixas.

A operação Crato correu muito bem e confesso que tive uma enorme alegria por trinta e tal anos depois poder tirar uma fotografia com o Justino e o Gonçalves! Eles estão iguais. Eu tenho uma barrigona, estou careca e tenho cabelos brancos! Mas pareceu que foi ontem!
Um grande abraço a todos
João Vieira

segunda-feira, 30 de maio de 2011

2ª Parte da Comissão. Por favor esclareçam--me...

Durante a confraternizaação do passado sábado, com uma organização 5 estrelas do camarada Batista, vim a saber que a ida do nosso Batalhão para a intervenção teve a ver com a bola ou com os homens da bola, situação que eu gostaria de ver mais explicada e para o efeito solicito ao Dias que me dê mais umas dicas.
Tive o cuidado de numa das minhas crónicas referir o que se passou comigo e o que Comandante nos transmitiu quando aterrou no Mucondo, na primeira escala que fez no seu regresso de Luanda.
A forma como discursou não deixou transparecer que o destino do Batalhão para a 2ªparte da comissão tinha sido cozinhado no seio do próprio batalhão.

Clemente Pinho. Ex-Furriel Mecânico Auto. CCav. 2692

Estórias do Mucondo

No operação Crato o Luís (1º cabo do 1º pelotão) contou-me o episódio da sua sede numa das muitas operações que juntos realizámos, não posso deixar de o relatar ainda que seja incapaz de lhe dar a graça que teve contada pelo seu protagonista, mas em todo o caso aqui fica para que não esqueça.

A estória do Luís , uma entre muitas das histórias do Mucondo.

Naquela operação, depois de dois dias no mato, sob o calor escaldante e húmido da mata ,o Luís deu por vazio o seu cantil de água, já noutras vezes tal tinha acontecido mas agora a sede tornou-se verdadeiramente insuportável, um suplício constante ou porque o calor fosse muito ou porque a operação decorria num terreno muito acidentado com constantes e penosas subidas aos montes logo seguidas de cuidadosas descidas não fosse alguma queda atirá-lo para o tronco de alguma daquelas gigantescas árvores com espinhos de vinte a trinta centímetros no tronco sempre prontos a espetaram-se nalgum incauto que ousasse sequer encostar-se à sua majestade : a árvore de espinhos.

Era muita a sede e, rapidamente, cresceu e tornou-se insustentável, ninguém lhe dava água pois se ainda tinham alguma, por terem sabido dosear o consumo e dessa forma também tinham doseado a sede, negavam tê-la, mas alguém mantinha ainda, não se sabe como, o cantil cheio de água.

O Luís aproximou-se do Gouveia (soldado do 1º pelotão) e pediu-lhe um golinho de água, a nega veio rápida, não tivesses bebido a tua tão depressa, não te posso dar água. Ó pá dá-me só um golinho. Não.

Passado um bocado, o Luís volta à carga: é pá um golinho não te vai fazer falta, tens o cantil quase cheio e nós ainda hoje havemos de encontrar um rio e encheremos os cantis, pelo amor de Deus dá-me só um golinho que já não aguento mais a sede. Não, já te disse que não posso dar a minha água, tivesses tido mais cuidado.

O Luís já não sabia como havia de dominar aquela sede cada vez mais macabra, por mais que quisesse deixar de pensar em água mais a sua mente insistia na água, ah se pudesse agora beber da água do poço , lá na terra, no "puto", sempre tão fresca, tão saborosa. Meu Deus, que pensamentos, não posso pensar em água, tenho de ter atenção não vá haver algum contacto com o IN, tenho de andar atento para não “lerpar”. Bolas a sede não me deixa tenho de encontrar uma saída.

Ao fim do dia, como era habitual, tentámos encontrar um lugar que reunisse condições para a pernoita, normalmente escolhia-se um local que nos acolhesse de modo a ficarmos fora do alcance de eventuais contactos nocturnos com o IN, fazia-se um círculo, dispersavam-se os homens de modo a que ficassem juntos apenas dois a dois , no máximo três, e nunca mais distantes que uns dez a vinte passos dos dois próximos grupos, no centro do círculo por vezes ficavam os graduados, nunca juntos, mas acompanhados de um ou dois homens.

Foi encontrado o local e o círculo da pernoita foi formado, o Luís quis ficar próximo do Gouveia que , entretanto já andava desconfiado com as atitudes do Luís. É pá, fico ao pé de ti, pode ser que tenhas consciência e ao menos me deixes molhar os dedos para os passar pelos meus lábios, sinto-os ressequidos. Se pensas que por ficares comigo vais ter água tira o cavalinho da chuva, podemos ficar juntos, somos da mesma secção, mas olha: vai pedir água a outro.

A noite caiu rápida , como sempre, a escuridão envolveu-nos a todos.

Por mim, não tinha medo da noite , tinha mais medo do dia, a noite com a sua escuridão protegia-nos, ninguém nos podia ver, além do mais estávamos deitados no chão posição de defeso contra qualquer ataque com armas de fogo. A noite era amiga em todos os sentidos.

Rapidamente toda a gente adormeceu. Toda não, pois estava montada a segurança, os grupos que formavam o círculo iam-se rendendo ao longo da noite na vigília da segurança.

O Luís soube aproveitar bem a noite, estendeu o pano de tenda ao lado do Gouveia, no grupo também ficou o Cruz, eram três, o Gouveia ficou no meio, defensor da sua água, fez do cantil a sua almofada, meteu-o mesmo debaixo da cabeça. Para o Luís esta atitude foi decepcionante, alimentava a esperança de que mataria a sede durante o sono, sempre pesado do Gouveia. Este não tardou em adormecer, um sono profundo de justos, sonhava já com os seus campos alentejanos, verdes do trigo ondulante na brisa da planície, chegavam-lhe os aromas das estevas e do alecrim, a guerra tinha ficado para trás, como era bom o sono, como era bom dormir! Mesmo que no chão húmido da mata.

De súbito o Luís teve um clique: chegou-se mais e mais para junto do Gouveia, este já ressonava, devagar, devagarinho, muito devagarinho, com muito jeitinho, ergueu o braço e colocou a sua mão esquerda junto da cabeça do Gouveia, encostou-a, aguardou por algum sobressalto do Gouveia, nada, um pouco mais, a mão do Luís foi-se infiltrando entre a cabeça do Gouveia e o cantil, cada vez mais dentro desse espaço de pressão, um pouco mais, o Gouveia mantinha o seu ressonar, agora com mais força, que sonhos teria, talvez sonhasse com a namorada lá tão longe, que seria dela, manteria aquele calor ardente do último beijo, já morto de saudades, atirado sem vergonha na Gare de Alcântara ainda antes do Gouveia marchar em direcção às escadas do Niassa que o levaria para terras tão distantes quanto misteriosas?

O único sonho do Luís era chegar à água, se lá chegasse, tinha o mundo na mão. Pouco a pouco, foi aumentando a pressão de baixo para cima sobre a cabeça do Gouveia e eis que já não sentia nas costas da sua mão o frio do cantil verde. O sono do Gouveia continuava profundo o que não admira dado que estava extenuado das caminhadas do dia.

O cantil estava liberto, mas isso não era tudo, o Luís tinha de com a outra mão, e só com ela, agarrar o cantil, tirá-lo daquele sequestro improvisado pelo Gouveia, tinha ainda que abri-lo e beber a água, tudo sem retirar a mão que sustinha a cabeça do Gouveia. Tudo sem retirar o Gouveia dos devaneios dos seus sonhos.

Ah , mas a sede , pelos vistos aguça o engenho e a habilidade, com muito jeitinho o sequioso Luís conseguiu retirar o cantil abri-lo e, meu Deus, que prazer dá beber quando se tem sede, o Luís bebeu e bebeu, bebeu mais de meio cantil, deixou alguma água para que o Gouveia não desse pelo embuste, a sua vontade era mesmo bebê-la toda.

No dia seguinte, já na caminhada da operação, o Gouveia deu pela falta da água, lembrou-se então que tinha dormido com o cantil debaixo da cabeça, ora bolas deitei o cantil, tinha-o mal fechado e o resultado foi que a água se escoou enquanto eu dormia. Bolas.

Luís, olha, afinal nem que queira te posso dar água, ontem não rolhei bem o cantil, durante a noite ele estava tombado e a água foi-se.

Estavam na conversa, gostosa para o Luís que não abria mão da sua marosca eis que , diante dos olhos de ambos surge um rio dos muitos que percorrem os Dembos, com uma corrente límpida de água que a todos encheu os cantis e matou a sede de três dias de longas e penosas caminhadas pelas matas de Angola.

(Esta história foi-me contada pelo Luís, 1º cabo da minha secção, no dia 28 de Maio de 2011, e recriada por mim)

(Há quarenta anos que não vejo o Gouveia, decerto nunca veio às operações anuais, quem souber dele, diga alguma coisa)

José António da Silva Tavares


quarta-feira, 11 de maio de 2011

"Como eu entrei na guerra"

Não é a continuação das minhas memórias da guerra, mas apenas aproveitar o que o Júnior escreveu sobre a morte do nosso camarada Jorge António e acrescentar mais alguma coisa.


A 2ª parte da comissão, “prémio” dos senhores da guerra aos nossos êxitos no norte de Angola, esteve na origem das mortes inscritas no curriculum do Batalhão de Cavalaria 2909, das quais a do nosso querido camarada Jorge António foi a que mais me marcou, não só pela forma como ele perdeu a vida mas também porque em condições normais faltavam apenas dois meses para o nosso regresso.


É o que se diz "morrer com a praia ali tão perto".


O Jorge António morou ou era natural de Sacavém ou ali de muito perto.


Quando Cabo Miliciano em Sacavém, tive a possibilidade de alugar um quarto fora da unidade onde praticamente todas as noites trocava a minha farda pela roupa civil, pratica corrente de quem gostava de arriscar e adorava a noite.


Uma sobrinha da dona da habitação, de nome Manuela, que trabalhava numa pequena superfície comercial (tipo pingo doce em ponto pequeno) situada na parte alta de Sacavém, tinha, entre várias colegas, uma cujo nome não me recordo, que de vez em quando me desenfiava uns cremes para barba e uns desodorizantes que me via à rasca para pagar. A vida militar naquela altura era complicada…


Por partida do destino um dia, não mais de dois meses depois do acontecimento que vitimou o nosso camarada Jorge António, recebo uma carta dessa moça onde me pedia encarecidamente para lhe contar os pormenores relacionados com a morte do seu primo, assim como as condições em que se encontrava o corpo, de forma a que a família tivesse de facto acesso à verdade, pois as versões que lhe chegaram não eram coincidentes.


Como devem calcular fiquei completamente à rasca e sem saber como actuar fui ter com o Capelão, que depois de me ouvir e ler a carta, me aconselhou a relatar a verdade, deixando ao critério da minha amiga a divulgação ou não da minha informação.


Foi o que fiz. Dias mais tarde recebi uma nova carta a agradecer a informação.


Não cheguei a saber o que de facto foi dito aos familiares mais directos do Jorge António.


Paz à sua alma.


Clemente Pinho – Ex-Furriel Miliciano Mecânico Auto. C.Cav. 2692






segunda-feira, 9 de maio de 2011

Atacamos ou comemos primeiro?

Uma tarde apresentou-se no quartel um guerrilheiro e o comandante Taxa Araújo, depois de várias conversas privadas “convenceu-o” a levar-nos à sua sanzala. E calhou ao 4º pelotão ir ao objetivo. Sabíamos que a missão era arriscada, pelo facto de o suposto guia nos poder levar a uma emboscada. Com um pé atrás lá partimos, quando a noite ainda ia a meio, de modo a que as viaturas nos largassem ao clarear da aurora.
Começámos no trilho ainda mal se via. Percorremos primeiro o capinzal sob o habitual cacimbo noturno e depois entrámos na mata, aqui já acompanhados pelos inebriantes cheiros da floresta e pela orquestra das aves que, em cada madrugada, nos brindavam com seus inesquecíveis cantos.
A certa altura começámos claramente a ouvir o ruído característico da sanzala. Os passos tornaram-se mais cautelosos e o ritmo cardíaco aumentou abruptamente. E agora?
O pequeno-almoço tomado no quartel tinha sido leve por ser demasiado cedo, havia horas. E horas era o que o meu estômago já dava. Hesitei em dar prioridade ao ataque. Como todos tinham percebido que estávamos em cima do objectivo, mandei passar palavra, em voz baixa como de costume, a perguntar “atacamos ou comemos primeiro?”. Quando o passa-palavra ia para lá do meio da bicha pirilau, oiço uma voz em alto e bom som: “Eu quero comer já. Se morrer nesta (operação) morro de barriga cheia”. Irritadíssimo, mandei um porrrra!!! dirigido aquele alentejano de goela incontrolada e ordenei a saída do trilho para comermos.
Tudo nas calmas naquele início de manhã radiosa, como se estivéssemos na ponta de um morro e sem pressas de ir a parte alguma, como aqueles que romperam as botas comigo se lembram. Como ruído de fundo continuava o canto das aves. O falatório controlado da sanzala continuava, lá mais abaixo.
Terminado o "repasto" dei ordens para voltar ao trilho. Já de mochila às costas e a dar os primeiros passos….. sai um tiro! O vigia da sanzala, que vinha fazer o habitual reconhecimento do trilho, tinha disparado o chamado tiro de aviso.
A partir deste tiro a guerra era a sério e cada um sabia o que devia fazer. Aí vamos todos em corrida por aquele trilho abaixo, com palavras de ordem apropriadas, que dispenso de recordar. Quando chegámos ao objectivo já não vimos ninguém. Todos tinham fugido para se esconderem, quais perdigotos apanhados desprevenidos no ninho. Para trás tinham deixado os seus parcos haveres e as panelas ao lume com mandioca. Fizemos o que era suposto ser feito e regressámos.
Mas tenho que referir algo de fundamental. A partir do 1º tiro do IN, que aliás penso que foi único da parte deles, quem foi realmente o mobilizador das tropas foi o furriel Sá, o brasileiro. Embora ele não pertencesse ao meu pelotão fez parte daquela operação. Com efeito, com aquela voz de trovão com sotaque brasileiro, transmitia um enorme empolgamento às tropas em acção.
Devo a todos o sucesso da operação. Mas a actuação do furriel Sá foi decisiva.
Que será feito dele?

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Homenagem

Durante a nossa campanha militar em Angola, faleceram 2 camaradas em combate.
Um deles assentou praça, tal como eu, o Silvestre,o Ferreira, o Borreicho, o Augusto e o Galante, (não sei se citei todos), Em Beja no R.I.3.
Fizemos parte do mesmo pelotão na recruta e depois, também no quarto pelotão da CCAV. 2692 do BCAV. 2909, comandado pelo camarada alf. mil. Carlos Dias.
Refiro-me ao primeiro cabo Jorge Manuel de Oliveira António, vitimado pela explosão de uma bomba aramadilhada, em 19.02.1972.
Foi um camarada de quem sempre gostei muito, era leal e amigo e sempre bem disposto.
Peço perdão, se estou a ferir a sensibilidade de alguém, ao citar o nome, mas tenho de dar a conhecer esta quadra que foi escrita pouco dias depois da sua morte e que permaneceu no segredo dos Deuses até hoje.

Ao Jorge António esta homenagem

António, amigo, irmão
Neste meu peito saudade
Filha da condenação
De tão nova eternidade

José Diogo Júnior