PARTE 3
270º Dia
... O vencimento era entregue com recibo e tudo, por
via de regra assinado com uma cruz, sem Cristo mas igualmente dorida na carne e
na alma, ou lambuzado com uma impressão digital de gordura, restos do último
mergulho de mão na lata de peixe podre do almoço oferecido pela gerência...
O sol queimava sufocante e abrasador.
No terreiro enorme da fazenda havia uma fila com cerca
de trinta ou quarenta negros que se alinhava junto ao casarão amarelo-torrado
de traça colonial, uma espécie de castelo imponente que dominava as cercanias.
O edifício é enorme e circundado a toda a volta por
uma varanda integrada na construção, coberta pelo telhado que se prolonga em
forma de guarda-sol de aba larga e o protege da inclemência do fogo ardente que
cai dos céus. Ao longo daquele autêntico passeio liso de cor grená-escuro gasto
pelo uso, dispõem-se alguns bancos e cadeiras de repouso e, naquele dia, também
uma pequena mesa com uma cadeira trazida do mobiliário interior, onde confina a
fila de negros maltrapilhos e mal alimentados.
Era dia de pagamento. Por norma, a tropa do Mucondo, a
quem cabia a protecção da fazenda, sempre que passava por ali parava e
procurava inteirar-se da situação quanto a notícias de movimentos dos turras,
deixando uma palavra de segurança e conforto apreciada por todos. Por vezes,
como naquele dia, nem chegavam a parar os motores das viaturas. Uma troca
rápida de palavras seladas com um aperto de mão ou, por vezes, apenas um aceno
à distância, se a pressa era muita, cumpriam um protocolo de rotina a que ambas
as partes já estavam habituadas.
O capataz, de alcunha “General Ramalho”, que nunca se
conseguiu esclarecer donde provinha, admitindo tratar-se de uma espécie de
título obtido no início da guerra nos anos sessenta, homem de grande corpulência
e anafado, bigode à Clark Gable esmeradamente aparado, quase sempre de chapéu
colonial enterrado na cabeça, dirige-se para as viaturas que tinham parado a
alguns metros da casa.
Repentinamente inflecte a sua marcha e aponta, em
passo apressado, para um negro que, cansado de estar de pé ali à torreira do
sol sabe-se lá havia quanto tempo, se sentara no chão. De chibata na mão agride
com alguma violência o funcionário – assim eufemisticamente tratados – enquanto
o agarrava pelo braço e o punha de pé, sacudindo-o sem que este esboçasse
qualquer tentativa de defesa. Uma espécie de boneco de palha nas mãos do
“General”.
- De pé seu cão! Foi o que se percebeu da torrência de
impropérios e prepotência despejados sobre o pobre coitado.
Todos assistiam em silêncio àquela cena, sufocando uma
amálgama de revolta e dúvida momentânea em distinguir o verdadeiro inimigo que
nos trazia ali. Por fim ouvem-se alguns murmúrios de agitação entre os militares.
A violência é desmedida e pouco qualificável.
De repente, o Alferes que comandava a coluna salta da
viatura de G3 em punho apontada ao capataz, denotando um evidente transtorno
pela forma apressada como caminhava e a expressão que levava no rosto.
- Se você volta a fazer isso na minha frente
despejo-lhe o carregador na barriga! Ouviu bem o que lhe disse? Gritava o
Alferes de G3 em riste apontada à barriga do capataz e os olhos esbugalhados
parecendo quererem saltar-lhe das órbitas.
Por momentos pensou-se que podia acontecer ali uma
tragédia. O capataz também assim o entendeu pelo ar lívido e agitado com que o
Alferes o interpelava. Por entre palavras de justificação e tentativas de
apaziguamento mal balbuciadas pelo “General” o Alferes foi recuperando a calma,
não sem continuar a avisar de forma clara de que aquele cenário não deveria
repetir-se, pelo menos na sua presença, o que pareceu ter sido inteiramente
apreendido.
Fez-se um enorme silêncio no amplo terreiro. Apenas o
ruído monótono dos motores das viaturas cortavam o gelo daquele quadro de
enorme contraste com o calor tórrido daquela manhã. O capataz, mal recuperado
do susto, dirigiu-se de cabeça baixa para a mesa dando início aos pagamentos. A
queixa haveria de chegar às chefias militares com o Alferes a ser admoestado e
o assunto a ficar pelo conveniente esquecimento, embora o “General” tenha tido
alguma dificuldade em esquecê-lo.
Aos poucos o Santos, com quem estabeleci uma relação
de proximidade e convivência mais intensa, foi-me inteirando do funcionamento
da fazenda e as relações de trabalho estabelecidas com os assalariados, facto
que suspeito igualmente longe do conhecimento de muitos angolanos regressados a
Portugal após o 25 de Abril, que por vezes se insurgem contra algumas destas
realidades quando delas fazemos eco, negando com veemência a sua existência.
Há, no entanto, que salientar que estes actos menos
dignos e reveladores de um espírito colonialista exacerbado destituído de senso
e humanismo não exemplificavam a generalidade das relações estabelecidas entre
brancos e negros em Angola. Eu próprio fui testemunha disso em múltiplas
situações, onde o que falhava era a política central do estado e não a relação
fraterna e de amizade que ao longo de séculos de foi desenvolvendo. Mas é necessário
admitir que estes casos existiam um pouco por toda a parte onde as relações de
exploração de trabalho nas grandes fazendas do Norte não olhavam a meios para a
obtenção de lucros fáceis sem o menor respeito pelos trabalhadores
assalariados. Não terá sido por acaso que foi naquela zona precisa que acabou
mesmo por eclodir a luta armada pela emancipação e independência, em resposta
directa a actos de prepotência e exploração desenfreada já devidamente
relatados por autores que as presenciaram no tempo e contexto exactos em que
ocorreram.
A fazenda era ali uma ilha perdida num imenso oceano
de águas turvas e nevoeiros vários, impenetrável, desconhecida e praticamente
isolada do mundo. Ali tudo podia acontecer sem que alguém viesse a ter
conhecimento, salvo a tropa que existia para defender a fazenda e a sua
exploração das imensas riquezas da terra. Os trabalhadores eram recrutados no
Sul junto ao mar ou no interior próximo, região ainda pouco perturbada pela
guerra, e trazidos em magotes acondicionados em camionetas de caixa aberta.
Vinham de centenas de quilómetros de distância – perdendo o rumo e o sentido
das distancias – sendo despejados naquele depósito de paredes inexpugnáveis
erguidas pelos medos da guerra. Muitos por ali ficavam de geração em geração,
trabalhando de dia e trespassando a noite em bebedeiras colectivas de alienação
de quaisquer desejos ou projectos de futuro que nem existiam.
A cantina – conceito eufemístico atribuído a uma
armadilha com telhado e alguns bancos, montada num canto do terreiro mesmo ao
lado dos locais de pernoita dos assalariados – vendia essencialmente cerveja e
arvorava-se no único oásis em centenas de quilómetros em redor, sendo
proporcionado pelo patrão, num acto de tocante solidariedade e preocupação, que
procurava proporcionar aos funcionários momentos de divertimento e lazer nas
horas vagas. Uma espécie de “centro comercial” onde se pudesse espairecer o
espírito e recarregar baterias, depois de mais uma jorna no corte do capim ou
na apanha dos bagos amargos do café, que por fim tisnados da cor da pele do
assalariado, partiam picada fora levando consigo os silêncios da morte lenta,
que a tropa ajudava a emudecer. Uma espécie de ratoeira colorida que embebedava
os sentidos e ajudava ao esquecimento do dia anterior. Uma antecâmara de um
futuro vazio, sem data nem sétimo dia, nem projecto de dia nenhum.
Havia um vencimento mensal. Uma espécie de lenitivo de
consciência ou cortina de nevoeiro que suavizava o peso e o sentido da presença
colonial. Trinta e um escudos angolares mensais, alguns trinta e dois,
representando em escudos do Puto (designação angolana da
metrópole) menos vinte a vinte e cinco por cento, que era por quanto nos
cambiava às escondidas o cauteleiro da Mutamba os escudos que trazíamos de
Portugal. As relações de trabalho ali regiam-se pelas normas supostas em uso no
continente e ilhas adjacentes. O vencimento era entregue com recibo e tudo, por
via de regra assinado com uma cruz, sem Cristo mas igualmente dorida na carne e
na alma, ou lambuzado com uma impressão digital de gordura, restos do último
mergulho de mão na lata de peixe podre do almoço oferecido pela gerência. Para
a maior parte, o recibo apenas saldava uma pequena parte da dívida amontoada na
cantina que crescia mês após mês, qual algema invisível que apenas permitia
trabalhar sem descanso e impedia o uso da liberdade de romper as grilhetas da
submissão que os prendiam ao patrão e ao trabalho. De uma forma ardilosa,
enredava-se o trabalhador numa teia de interesses de uma só feição, capaz de o
prender para sempre a um ciclo vicioso, do qual apenas se conseguia
desembaraçar pela lei da morte ou incapacidade total para o trabalho, como
único atalho para a liberdade que só assim conquistavam. Uma prisão sem grades
cuja fuga era impensável. Uma autêntica jaula cercada por centenas de
quilómetros de terra escaldante impossível de transpor, na qual era necessário
pagar para permanecer prisioneiro. As dívidas acumuladas na cantina conferiam
ainda o lucro do patrão na venda das cervejas e um ou outro produto de primeira
necessidade, subvertendo o velho rifão de dar com uma mão para tirar com a
mesma, porque a outra brandia o chicote e mantinha a ordem de uma desordem que
não existia.
Era o Santos que me explicava toda esta teia complexa
de relações humanas e de trabalho. Era evidente a sua enorme dificuldade em
aceitar as coisas tal como funcionavam ali, ainda por cima sob a protecção da
tropa, que era algo que o transtornava de forma particular.
Voltámos a falar no assunto por diversas vezes e
outras tantas nos confortámos mutuamente, convencendo-nos de que pouco ou nada
podíamos fazer, senão apontar uma G3 à barriga bem nutrida dum capataz bruto e
servil, no fundo também ele escravo dos verdadeiros proprietários da fazenda,
esses sempre ausentes, viajando pelo mundo inteiro, tentando convencer jovens
Alferes de que a aquela guerra estava ganha e que o inimigo afinal nem existia. Aos
poucos fui entendendo que, afinal, o inimigo estava bem mais próximo de nós do
que se supunha. Como fui paulatinamente assimilando os conceitos e
preconceitos que me debitava o meu companheiro de viagem de Lisboa até Luanda.
Como entendia agora a consideração em que me colocava, deixando-me até um
convite para o visitar na sua mansão algures não sei onde, mas certamente distante,
muito distante, daquele local perdido e quase desconhecido em pleno coração dos
Dembos.
As rotinas na Companhia de Cavalaria do Mucondo iam-se
sucedendo com o derrubar dos dias riscados no calendário porno-militar pregado
no armário bem defronte da cama exacerbava um outro inimigo escondido que aos
poucos ia dilacerando as leis ditadas pela natureza subvertidas pela guerra.
De manhã e ao pôr-do-sol, a cerimónia do hastear e
arrear da bandeira, com a pompa e circunstância exigida por protocolos
apatetados tendo em conta os lugares de desterro em que nos encontrávamos.
Tudo muito solene e por vezes meio caricato. Cornetim
debitando notas mal amanhadas e pouco festivas porque o tempo para aprender
música tinha sido mínimo e de utilidade duvidosa. Uma guarda de honra formada
por quatro ou cinco militares de farda encardida e meio esfarrapada, com ar
estremunhado de quico à banda tapando os olhos ainda meio ensonados e
ramelosos, que apresentavam armas aprumando-se como podiam, secundados pelo
Oficial e Sargento de dia que, de braçadeira no braço, testemunhavam o brio e a
devoção daquela guarda em continência e de ar convicto.
Por último um militar que puxava o fio da honra da
bandeira, erguendo-a lentamente ao som do toque militar de notas titubeantes
até ao cimo do mastro erguido bem alto, ou fazendo-a descer inerte e exausta de
proclamar todo o dia a soberania de Portugal sobre aquele lugar perdido na
imensidão de África. Algo que nunca entendi. Porque razão a bandeira tinha
que descer todos os dias para voltar a subir no dia seguinte. Poupar a bandeira
à negrura da noite?
Idas à água, a cerca de um quilómetro de distância,
transportada em bidões ferrugentos que a tingiam com uma leve e imperturbável
coloração amarelada, que apenas escurecia um pouco mais o mijo da manhã. Jogos
de cartas, em que os golos eram pagos em Whiskys, e de futeboladas, onde o
trunfo era andar à porrada no fim do jogo por suspeitas fundadas dum pontapé
errado nas canelas do companheiro quando seria mais ajustado apontá-lo ao
inimigo que, astuto, jogava por fora do arame farpado. Noites de contar estrelas
e desfiar luas a fio animando o desejo forte de que nos trouxessem sinais do
outro lado do mundo, ou escutando o silêncio do mato vazio de vozes de animais
nas cercanias que fogem para longe dos sons de guerra da tropa prenunciando a
morte.
E o convívio de noites inteiras com o ruído abafado e
monótono do gerador que nos ilumina a fronteira do medo erguida em três fiadas
de arame farpado enfeitado com armadilhas de morte, separando-nos das sombras
da noite sobre as quais construíamos o nosso imaginário de guerra, envolto em
receios e dúvidas que nos matam lentamente as horas de tédio, riscadas num
calendário que nos vai lentamente roubando a esperança e o tempo de vida.
300º Dia
... Agacho-me e contraio-me à frente para me espremer
todo como se fosse um pano único encharcado e deixo-me ficar até que a última
gota se me mija pelo fundo das calças...
A
guerra não pára. Só terá fim quando chegar o bom senso.
Participo
em mais duas operações das quais pouco há a contar.
Se
nos perdemos, o leitor e eu, por este rol de lembranças das peripécias da
guerra, é apenas porque julguei com algum interesse, passados que são mais de
trinta anos, lembrá-los a uns, e dá-los a conhecer a outros, que,
afortunadamente, nunca tiveram ensejo de avaliar o que foram aqueles tempos.
Sem saudosismos, sem lamúrias de sofrimento, sem arrependimentos de bravuras
desajustadas. Mas também, e acima de tudo, sem esquecer.
Também
porque hoje me dá uma enorme vontade de sorrir, quando a TV acompanha os nossos
soldados em guerras que assinalam o fim do que resta da nossa inesquecível
epopeia no Oriente, cobertas por mil e um repórteres de som e imagem (sempre
ávidos de captar as múltiplas sonoridades da adrenalina, que depois vendem a
peso de ouro) exaltando o sofrimento e os perigos de três longos meses de
afastamento da família, felizmente sem terem que dar um único tiro, nem tempo
ou oportunidade para um... adeus e até ao meu regresso! Afinal,
epopeias novas que fazem esquecer sofrimentos idos dos que morreram sem glória
nem benefício, que o tempo se vai encarregando de varrer da nossa memória
colectiva, para dar lugar à história nova dos feitos presentes e virtudes antigas,
que enriquecem a nossa gesta valorosa de povo de muita guerra e pouco proveito.
Cinco
horas da madrugada. Estamos na picada que liga o Mucondo à célebre rota do café
Carmona-Luanda.
A
operação prevê-se longa. O terreno é pouco acidentado e também não muito arborizado,
conjugação pouco usual naquela região, onde habitualmente os montes e a
floresta dominam a paisagem. A guerra não escolhe terreno. O inimigo usava por
vezes o ilógico como arma de dissimulação. Acoitar-se onde seria menos esperado
que o fizesse.
As
viaturas deixam-nos no ponto previsto para o desembarque e início da caminhada.
Mal nos tínhamos embrenhado no capim, cerca das sete horas da manhã, estamos na
margem de um rio com cerca de trinta a quarenta metros de largura, onde os primeiros
da fila param.
-
Qual é a ideia? Perguntei a mim próprio já meio desconfiado e antevendo algo
que me derrotava já ali antes de começar.
-
Vamos ter que atravessar o rio, dizem-me quando deixo transparecer alguma
descrença.
Tínhamos
um quarto de hora de marcha pelo que me encontrava ainda fresco, com o humor já
acordado e pronto para a função de aliviar ambientes pesados.
-
E os barcos...? Atirei com ar sério, jogando com o gozo duma alternativa que se
me tornava penosa admitir mesmo antes de mais que confirmada.
-
Quais barcos qual quê meu Alferes. Vamos mas é a pé e a nado. Dizia-me um
soldado convencido de que o Alferes maçarico falava a
sério.
Confirmavam-se
as minhas mais que garantidas suspeitas. Nós tínhamos passado aquele rio nas
viaturas meia hora antes através de uma ponte. Algo ali me estava a confundir.
Mas então porque raio não ficámos logo do lado de lá do rio, escusando de o ter
que atravessar agora meio apeados meio a nado?
- Além o nosso Alferes é que sabe. Apontava-me, com ar
de desfaçatez cúmplice, um militar com o nariz e o queixo na direcção do
Chagas, que voltava a comandar a operação. Não me conformei e fui até lá à
frente perguntar.
Eram movimentos de dissuasão. Traduzindo: tentar
aldrabar o inimigo...
- Se tivéssemos ficado do lado de lá, o IN já sabia
mais ou menos para onde íamos. Assim, não lhes passa pela cabeça que vamos
atravessar o rio um pouco mais acima, seguindo pela margem contrária àquela em
que supostamente pensam que vamos andar, dizia-me o Chagas com ar de vitória
antecipada.
Pois. Nem ao IN lhe passava isso pela cabeça, nem
sinceramente a mim. Pelo que, aparentemente, fomos os dois bem enganados; o IN
e eu.
Então, eu ali viçoso, lavadinho e sequinho para me
aguentar quatro dias no mato e começo às nove da manhã por mergulhar na água
fria; será que é para nos refrescarmos antes que o calor aperte?
- Não meu Alferes! Isto são tácticas do nosso Alferes
Chagas. E não se admire se na volta não tiver que atravessar o rio outra vez
para cá só para enganar a malta que nos vem recolher ou poupar água do banho lá
no quartel. Confidenciava-me um outro militar arqui-inimigo dos processos e
tácticas do Chagas, dando corpo a uma certa rivalidade que por vezes ocorria
entre os valores e capacidades de cada pelotão. A água barrenta dá-me pelo
peito, mas o camuflado já está completamente encharcado até ao colarinho.
Levo a G3 e o saco à cabeça procurando não ser
arrastado pela corrente que não é forte, enquanto que com os pés vou tacteando
o fundo do rio pedregoso em busca de chão direito que me mantenha o equilíbrio.
Um engraçadinho sugere-me que tenha cuidado com os jacarés, pisando noutro
sítio se por acaso o chão se mexer. Um outro dá continuidade a uma boa disposição,
para a qual não descortino motivo, e alvitra que é muito provável que àquela
hora os jacarés ainda estejam a dormir, pelo que o perigo ficava atenuado.
Saio que nem rede de pescador recolhida do mar,
escorrendo água por todos os lados. Olho-me com dó e um desejo imenso de
rebobinar aquele filme e voltar a ficar seco e cheiroso do sabão azul do banho
da madrugada. Saem-me irreprimíveis golfadas de maldição que não consigo
abafar, mas que guardo para mim num silêncio de louco que recusa partilhar o
seu mundo com os outros de tão distantes que se encontram.
Com as mãos aperto as calças pelas pernas abaixo
escorrendo a água e o lodo pescado no fundo do rio que me enchem de novo as
botas de lona, qual sapato de cinderela transformado num ápice em sapo nojento
saído da lama. Descalço-as e despejo aquela papa de água, terra e lodo que se
escorre em pequenos fios de agulha formando picos que se vão desmoronando e me
perfuram memórias das meninices de praias de castelos de areia, à sombra das
ondas do mar, que na próxima volta da maré-cheia me desfazem os sonhos e os
depositam no fundo do rio por onde navego agora perdido de raiva e ainda
menino. Agacho-me e contraio-me à frente para me espremer todo como se fosse um
pano único encharcado e deixo-me ficar até que a última gota se me mija pelo
fundo das calças. Volto a calçar uma sopa de pão de açorda em cada pé e ergo-me
com uma vontade enorme de testar o humor do Chagas, espetando-lhe uma ou duas
farpas que me deixem um pouco mais aliviado daquela carga de água que me
ensopava até aos ossos.
- O melhor agora é descermos o rio, voltarmos a passar
a ponte lá em baixo e retornar para a outra margem. Depois voltamos a
atravessar o rio. Se formos depressa até pode ser que os jacarés ainda estejam
a dormir e nos facilitem a travessia. Assim é que o inimigo ficava mesmo
baralhado... ó Chagas.
Não obtive resposta, salvo aquele doloroso e
repetidíssimo “... Tá no a andar!”, que nos punha a caminho de um outro abismo
desconhecido e do próximo “... Alto! Paramos aqui. Montar segurança...”
O dia é seco e muito quente. A paisagem é um tanto
árida e de poucas árvores, contrastando com o habitual nos Dembos de vegetação
luxuriante e poucas abertas. Haveria de mudar um pouco mais adiante.
Continuo resmungando pela margem do rio acima por onde
seguimos maldizendo aquele mergulho matinal meio estúpido, tentando adivinhar
quando voltaria a estar seco e mais confortável. A roupa range-me no corpo, os
pés arquejam dentro das botas ainda ensopadas.
- Daqui a meia hora está sequinho e pronto para ir ao
baile, meu Alferes, dizia-me o “Montijo”, sempre de piada afiada que
acompanhava com largo sorriso enfeitado por meia-dúzia de dentes em falta, uns
vencidos pela cárie, outros jazendo cravados num poste que o amparou num
acidente de motoreta.
Continuei resmungando a graça dos trinta minutos. Mas,
com um rigor pouco comum nas coisas da guerra, trinta minutinhos depois de
reiniciada a marcha eu estava efectivamente seco, remoendo agora algumas
saudades de uma recente frescura anterior. Era como se todo eu tivesse sido
mergulhado numa máquina de secagem rápida que me tivesse espremido da cabeça
aos pés. A roupa estava seca mas dura e incómoda como se impregnada de
goma. O sol queimava. Era um autêntico braseiro. As sombras esporádicas de
árvores dispersas eram bênçãos para o corpo, as quais procurávamos
serpenteando, qual cobra-cascavel no deserto em busca das sombras raras
enquanto procura alimento.
Trazíamos um reforço de cantis com água, uma opção
tomada a partir da leitura da carta que nos referia poucas linhas de água no percurso
que íamos tomar. Era, pois, de esperar que os reabastecimentos de água fossem
muito pouco frequentes ou eventualmente nulos. Uma linha de água na carta não
significava um curso de rio ou riacho capaz de nos reabastecer. Tudo dependia
das chuvas ou da época do ano. Tanto podiam ir cheios como estar secos, o que
acontecia com frequência.
O momento de deixar o rio, cuja margem seguimos
durante vários quilómetros, foi de embebedar de água e encharcar a cabeça e o
próprio quico, que um quarto de hora depois estaria seco que nem um carapau
depois de quinze dias de seca ao sol.
Mergulhamos no capim como quem iça uma vela e se deixa
vogar mar fora sem saber o que o espera no horizonte remoto e desconhecido do
lado de lá. São percorridos muitos quilómetros de um sol insano que nos fustiga
sem piedade alternando com a bênção misericordiosa da frescura das noites.
Há dois dias que andamos sem encontrar água.
Dois longos dias sem inimigo nem água, sendo que o
primeiro não nos faz falta nenhuma. O sol não dá tréguas e continua a derramar
ondas de calor chamejante desde que nasce até se esconder no horizonte
vermelho, num presságio de promessa de novo inferno para o dia seguinte.
As reservas de água carregadas no rio há dois dias
atrás estão esgotadas há muito. Vem-nos à memória, em jeito de miragem de uma
onda de frescura, a malfadada travessia do rio dias atrás às sete da manhã. Há
quem verta um resto de água quente na tampa do cantil para molhar apenas os
lábios, voltando a guardar religiosamente as gotas que restaram, como se de
ouro ou uma relíquia se tratasse. Há quem se atire para o chão e jure que não
sai mais dali, para logo mudar de ideias mal a coluna preguiçosa se põe de novo
em marcha em busca de um oásis que ninguém promete.
A língua fica pastosa e dificulta o falar. A saliva é
praticamente inexistente. É como se viéssemos a mastigar cola. Os lábios
ásperos e gretados ouvem-se roçar um no outro e queimam.
- Água! Ouve-se na frente.
- Água!
Passos apressados, um ânimo que parece renascer não se
sabe donde, um ir destapando um cantil que ferve à cintura vazio e seco.
- ... Água?
A “água” é um charco pestilento calcado por dezenas de
pegadas de animais, mistura de lodo e algum líquido que borbulha à superfície,
onde pululam uns bichinhos minúsculos de pouco mais de meio centímetro,
movimentando-se rabiando o corpo todo, e que em pequeno costumava ver nas
valetas de água parada da minha aldeia misturados com os girinos, e a que se
dava o nome de saltitões.
Muitos não resistem. Procuram uma zona de maior
profundidade, três a quatro dedos, inclinam o cantil e enchem-no até onde é
possível, procurando enxotar as pequenas jangadas de porcaria pestilenta que se
precipitam em direcção à boca do cantil. Com uma bola de algodão tapam o bocal
do outro cantil e vertem-lhe aquele líquido meio espesso que vai deixando o
algodão empapado de lama e saltitões que se debatem como nós
pela sobrevivência. Juntam-lhe um daqueles comprimidos militares que garantem
destruir a maior parte das doenças (além do fígado e dos rins) que pululam nas
águas podres – teoria jamais comprovada, mas que ajudava a beber qualquer
porcaria para não morrer de sede – e agitam o cantil com grande intensidade
procurando aumentar o efeito do químico. Alguns nem dão tempo sequer a que se
derreta e apazigúe alguns dos milhentos micróbios que se preparam para nos
devorarem a nós. Outros, na dúvida, enfiam um segundo comprimido, por suspeita
de que aquela mistela é capaz de o merecer, ou por receio de que será mais
certo as doenças contidas na água derrotarem elas mais facilmente o poder da
pastilha que ao contrário.
O sabor é horrível mas só param depois da quarta ou
quinta golada, não vá o saborear antecipado corromper a vontade de matar a
sede. Alguns resistentes parecem preferir o risco de morrerem à sede, mas têm
algumas armas escondidas em que confiam e que hão-de utilizar na hora certa e
no momento apropriado.
Cai a noite estrelada e fresca. O desânimo é enorme.
No silêncio murmuram-se maldições.
- Agora só faltava os turras atacarem, ouve-se.
- Se trouxerem água até a G3 lhes dou, carago.
Que puta de vida. Que mal fiz eu a Deus? Andou a minha mãe a criar-me com tanto
carinho para isto.
Ninguém tem vontade de comer. A sede tira qualquer
vontade de mastigar ou engolir o que quer que seja. No mato morre-se de sede.
Dificilmente se morre de fome. A água até a fome engana.
A boca tem um sabor estranho, o raciocínio
imobiliza-se, o pensamento tem um único sentido: chuva, rios, mar, vinho,
cerveja, água, água...
Na escuridão que já nos envolveu há duas ou três
horas, vislumbro três vultos que deslizam em silêncio saindo duma tenda
afastando-se ligeiramente da zona de concentração, sendo claro o cuidado que
põem em não fazer o menor ruído para não serem vistos. Tanto quanto me é dado a
perceber, um pouco mais além agacham-se os três e ficam imóveis. A situação
desperta inicialmente a minha curiosidade. Há militares que ficam de sentinela
de noite guardando o sono dos companheiros que dormem. Mas não assim. Normalmente
são quatro que se dispõem formando um quadrado, alguns metros para lá das
tendas dispostas em círculo. Admito uma segunda eventualidade relacionada com a
satisfação de necessidades fisiológicas, cujo uso tinha regras. Mas em grupo
não me parecia apropriado. E para outras, essas sim de grupo... o momento não
me parecia o mais oportuno...
Desligo-me da situação porque nem me apetece indagar.
Disponho-me a tentar dormir.
Cinco minutos depois.
- Meu Alferes, meu Alferes! Já viu? Sussurra-me o
“Montijo” entrando de cócoras na tenda em grande agitação.
- O quê? Pergunto, sem me mexer nem abrir os olhos. Achei
que na altura me podiam até atacar que a vontade de me mexer seria nula.
- O Serrano, o “Galinhas” e o Gama estão ali atrás das
tendas de joelhos a rezar para que chova. O meu Alferes já viu o que é que a
merda da falta de água faz? Os gajos piraram. Têm os miolos cozidos do sol.
- Não me parece “Montijo”. Na hora do aperto a fé é a
última arma para algumas pessoas. Você não acredita em Deus? Disse, continuando
de olhos fechados perguntando-me a mim próprio por que carga de água trazia eu
aquele tema para a conversa numa altura daquelas.
- Nunca fui de ir à missa, meu Alferes. Só me lembrei
de Deus quando estive quase a patinar naquele acidente em que me ia partindo
todo contra um poste. Ia lá deixando os dentes todos. Já lhe contei essa, não
contei? Depois curei-me e olhe, nunca mais me lembrei disso outra vez.
- Pois é “Montijo”; quando a vida começa a andar para
trás é que as pessoas se lembram de Deus. É assim como quando faz trovões.
Depois, passa a tempestade e só se voltam a lembrar quando trovejar de novo.
- Não tinha que morrer. Senão tinha morrido mesmo, não
acha? Eu só me lembrei. Mas não pedi nada. Eu nunca acreditei em Deus. O que
tiver que ser é... e seja o que Deus quiser...
- Claro, “... e seja o que Deus quiser...”.
- Vamos mas é dormir ó “Montijo”, porque assim
nem sentimos a sede. Amanhã à noite estamos em casa.
O “Montijo” acomoda-se na tenda virando-se de costas
para mim enquanto abafa um riso fungado que se lhe escapa pelos dedos que
comprimem o nariz.
- Meu Alferes! Tenho a impressão que já está a
pingar...
- Não goze “Montijo”, não goze.
- Os gajos piraram. O “Galinhas” então mesmo sem sede
já é marado.
Na mata às sete horas já se dorme. Naquela noite seriam
umas nove quando nos dispusemos a tentar descansar, perturbados como estávamos
com a falta de água que nos martirizava de uma forma difícil de traduzir por
palavras. Os tormentos da sede confundem-nos de tal forma o raciocínio e os
sentimentos que o que fica na memória é uma espécie de dor vazia de imagens
cuja recordação tráz mal-estar e um enorme desejo de não lembrar.
Duas da madrugada. Dou um salto e agarro-me à espingarda
com o “Montijo” em grande alvoroço dentro da tenda.
- Meu Alferes, meu Alferes; porra chove para caraças;
o cantil, o cantil!
Uma das características do clima de África é a
alternância brusca entre um sol radioso ou uma noite estrelada e uma chuvada diluviana
em menos de uma hora, para logo depois tudo serenar.
O alvoroço era indescritível. Inventavam-se mil e uma
maneiras de apanhar a água que caía generosamente do céu. Fizemos uma goteira a
partir do bico dos ponchos que formavam a tenda e a água corria a fio ali mesmo
à nossa frente. Alguns soldados dançavam em grande algazarra à chuva agarrados
uns aos outros, perante a escamação do Chagas que lembrava em vão a necessidade
de observância do silêncio e das normas de segurança.
- Eu quero que os turras se f....
Era o tipo de resposta que invariavelmente se
conseguia ouvir, numa perfeita loucura que subvertia os conceitos e
preconceitos, comandos e hierarquias, que no escuro de uma noite de chuva
intensa sofregamente abençoada se misturavam e confundiam.
A água sabia à borracha dos ponchos e trazia um leve
travo salobro do suor que se lhe entranhava durante o dia quando transportado
às costas dobrado e atado ao saco. E tudo porque ninguém se atreveu a perder as
primeiras gotas que caíram e o lavaram de três dias de poeira e transpiração
transbordante. A chuva podia terminar de um momento para o outro. O céu escuro
não deixava adivinhar a dimensão da chuvada.
Choveu toda a noite. Foram bebedeiras de água e de
pragas devolvidas ao sossego dos espíritos saciados da guerra da sede. Qual
alambique destilando o melhor álcool, cada cantil sabia melhor que o anterior,
depois de bem lavados os telhados da tenda que nos abrigava. Ninguém mais
dormiu. Não só porque todos queriam beber até não poder mais, mas também porque
a chuva inesperada encharcou tudo, entrando pelas tendas adentro.
Meditativo, o “Montijo” está sentado à porta da tenda
de pernas cruzadas e olhar fixo no fio de água que escorre para dentro do
cantil.
- Porra meu Alferes! E choveu mesmo. Diz sem tirar os
olhos da água que corre límpida para dentro do terceiro ou quarto cantil que enche.
- Agora é que você começa a ir à missa ó “Montijo”.
- Náh! O
meu primo era um beato do caraças que até ajudava à missa.
Mesmo assim não deixou de se enfiar por uma ribanceira abaixo com uma bebedeira
que nem queira saber. Olhe, ainda ficou com menos dentes do que eu.
- Mas ó “Montijo”; isso foi da bebedeira.
- Ó meu Alferes; e Deus naquela altura também estava
distraído ou com os copos, não? Ao que consta, Deus não dorme... nem bebe. Só
que...
Pronto. E assim se tresmalhou mais uma ovelha que se
admitiria poder constituir-se num sério candidato ao rebanho de Deus, passada
que foi aquela provação de tão grande aperto e sofrimento.
Talvez na próxima, quando Deus e os homens ousarem
desafiar as convicções de um “Montijo” que entende que a chuva nem sempre cai
quando Deus quer ou manda.
310º Dia
... Já fugi do palco da minha derrota.
Há um tiro isolado que ecoa longamente no vale.
Um tiro a que, de olhos no chão, ninguém responde nem
dá sinais de medo ou cuidado, porque transporta uma mensagem de dor ou o fim
dela. Um tiro rogado em silêncio pelo próprio derradeiro sopro de vida a que se
destina. Que me estremece e trespassa a consciência, qual trovão que ensurdece
os meus sentidos e me queima qualquer razão. Que me sinto atingir em cheio no
peito e derrubar o que me sobra de ânimo já de si desfeito. Que me angustia e
me deixa por momentos à deriva e sem norte...
Faltam duas semanas para terminar o meu estágio e
regressar ao Puto. O Capitão quis-me presentear com uma última
operação, talvez para compensar aquele período em que estive doente.
Há dois dias que vagueio nos domínios do Júlio.
Lembram-se?
Caminhamos num vale com uns cem metros de largura
ladeado por montes de pequena altitude cobertos por densa vegetação. O vale é
plano. A terra é escura. Há lavras por todo o lado. Milho crescido muito bem
tratado, sinal de que nos encontramos em pleno território inimigo. A tensão
cresce. Tudo pode mudar de um momento para o outro. Pela primeira vez
encontro-me em território claramente assinalado pela presença inimiga.
Abandonamos o percurso aberto que trazíamos pelo meio das lavras porque nos
expomos demasiado e nos tornamos num alvo fácil. Caminhamos agora mais
protegidos pela orla da mata com uma visão perfeita sobre toda a extensão do
vale.
Há uma ordem brusca para parar e agachar vinda da
frente. Silêncio.
Permanecemos assim por breves momentos que me parecem
uma eternidade. Sustenho até a respiração procurando eliminar todos os ruídos
que me impeçam de ouvir os sons que vêm da frente. Depois respiro ao de leve,
controlando o ruído do ar que me sai e entra lentamente pela boca e nariz. A
fila é muito longa. É impossível ver o que se passa bem lá na cabeça da coluna.
Uma informação digital corre célere toda a fila e
chega até mim em forma de V.
Vitória? Mas ganhámos o quê? Questiono-me eu num
solilóquio absurdo quebrando aquela onda hertziana que me devia atravessar e
continuar no militar que me seguia.
- São dois, meu Alferes, são dois turras – esclarece o
militar que se me segue, captando a informação e apercebendo-se da minha
indecisão. A onda encalhada em mim é restabelecida.
Abano a cabeça na maior censura e tento desculpar-me a
mim mesmo com a enorme tensão em que me encontro. Não havia ainda vitória. Eram
dois os inimigos que se dispunham a uma derrota contra os cinquenta de nós que
os esperávamos acoitados na mata.
Há um ou dois gritos que traduzo de interpelação de
alguém vindos da frente e que ecoam no silêncio absoluto do vale. Segundos
depois um tiro, outro e um terceiro que restabelece o silêncio, depois de
ribombar em ecos que estouram na minha cabeça.
Fico mais perto do chão. Não há notícias. Correm
apenas boatos. Dois já ficaram. Parece que ficaram dois.
De repente uma rajada, outra, tiros, muitos tiros, um
tiroteio incrível ali a cinquenta, setenta metros à minha frente sem que eu
veja o que quer que seja. Mergulho num pedaço de tronco derrubado que encontro
à mão e tento perceber o que se passa. Comigo ficam alguns militares que se
abrigam esperando que lhe transmita ordens. Não sei quem dispara, não vejo o
inimigo, ouço dezenas de tiros que se agrupam num único trovão que dura vinte,
trinta segundos e é interrompido a custo pela voz de alguém que grita: pára,
pára, pára! Mas os tiros continuam por mais alguns momentos, embora
dispersos e isolados.
- Ninguém dispara! Grito para os militares que ficaram
comigo.
- Ninguém dispara!
Tenho o dedo trémulo no gatilho supostamente pronto
para o uso que for requerido e espreito encolhido tentando descortinar algo que
se mexa e nos ameace. A fila fazia uma curva e desaparecia por entre vegetação
e pés de milho impedindo de observar o centro dos acontecimentos. Fez-se um
silêncio que parecia não ter fim. Um silêncio incerto lentamente transformado
em calmaria podre. Olho-me em volta. Sinto-me perdido e vulnerável como um grão
de areia no deserto. Reparo que, no meio de todo aquele tiroteio, a minha G3
tinha ficado com a patilha de segurança na posição de travada. Tinha-me
esquecido de a destravar. Era assim como ir para um duelo e esquecer de meter
as balas na pistola.
- Vais longe! Comento em voz alta para mim mesmo
quando dou por ela, perante o olhar interrogativo do militar que está ao meu
lado, pensando que o critico. Com a coronha da G3 apoiada no chão e com um
joelho em terra, fico por momentos com a cabeça assente no braço que segura a
arma, remoendo a minha falha que procuro colocar no cimo da lista das minha
preocupações futuras no sentido de não voltar a cometer o mesmo erro.
Há dois elementos do lado inimigo atingidos. Afinal,
apenas aqueles dois simbolizados num V de vitória que não lhes sorriu.
Nunca me dei bem com o sangue vertido fosse donde
fosse. Nem da galinha que a minha mãe aprontava em menos de nada nos domingos
de festa lá da aldeia. Sabia que havia ali bem perto alguém atingido por balas
de guerra, terrivelmente perfurantes que deixavam um pequeno orifício de
entrada e estraçalhavam tudo à saída. O meu primeiro impulso foi de ficar por
ali à espera que tudo passasse e regressássemos às casernas, onde me esperava
um papelinho mágico que me mandava de volta a Mafra ao remanso das guerras de
brincar.
Há ainda um enorme sentimento de insegurança após
aquele tiroteio. Vagueio de um lado para o outro procurando ordenar o meu grupo
e mantê-lo vigilante dada a posição desfavorável em que nos encontramos, já perfeitamente
localizados pelo inimigo. Disfarço o melhor que posso a luta interior que se
trava dentro de mim. Dou por me afastar instintivamente do teatro dos
acontecimentos. O mínimo que me esperava no meu futuro militar era pelo menos
uma boa meia-dúzia de situações daquelas, onde a morte estaria presente ou
deixaria o seu véu sombrio envolver os espíritos de quantos ficavam à sua
mercê. Talvez fosse melhor que me habituasse já à sua presença, garantindo o
início de uma relação de rotina que nos endurece os sentimentos e nos torna
insensíveis à dor, ao medo e aos sofrimentos próprios e dos outros. Há
responsabilidades e condutas que me vão ser exigidas. O treino a que me
sujeitam não deve cingir-se apenas à aprendizagem do modo de fazer a guerra, mas
também à eventualidade das suas consequências ou à desumanidade das suas armas
e circunstâncias.
Decido por me obrigar a ir à frente, apontando-me uma
baioneta às minhas pernas que ainda trémulas se recusam a caminhar naquela
direcção. Há militares que se movimentam de arma em riste procurando garantir a
segurança contra um inimigo invisível mas, sem dúvida, presente e pronto para
nos aniquilar e vingar os seus. De coração em sobressalto, chego ao local onde
a agitação é enorme. No campo de milho estão dois corpos caídos a cerca de
trinta metros um do outro. Um de bruços, inerte. O outro, gemendo, apoia-se num
cotovelo. Tem as vísceras na outra mão que aconchega no regaço. Olha-nos com
distanciamento como quem não espera mais nada além da morte e a deseja. Balbucia
palavras que procuro entender mas não alcanço.
Nem sotaque do Norte, nem linguarejar do Sul, ou
cantata ondulante das searas alentejanas. São palavras que brotam em
sonoridades novas e sentidos ínvios, que se me erguem estranhas naquela terra
distante, província desmedidamente maior que a mãe pátria, que não cuidámos de
aportuguesar, ao menos na língua, que nos fizesse entender as dores do corpo e
da alma ou mesmo os desejos de não querer ser português assim.
O Chagas está algo transtornado e movimenta-se nervoso.
- Não podemos ficar aqui mais tempo. Em minutos
caem-nos em cima e estamos totalmente desprotegidos.
À minha chegada o Chagas resume o que se passou na
esperança de que, entre todos, encontremos uma solução para a situação criada.
Afinal tratava-se de três elementos da população, dois homens e uma criança,
que vinham pelas lavras. Traziam às costas utensílios agrícolas que foram
confundidos com armas. Foi-lhes dada ordem para pararem à qual não obedeceram e
fugiram. Foram abatidos. A criança foi deixada fugir. Deviam vir acompanhados
de perto por guerrilheiros porque houve posteriormente disparos vindos da mata
que deram origem àquele tiroteio todo. Nem há tempo para ir ver se lá ficou
algum ferido ou morto. Temos que sair daqui.
O Chagas movimenta-se nervoso e assustado de um lado
para o outro. Tem um ar lívido estampado no rosto, marcado pelo sentimento de
responsabilidade de comandar aquela operação. Pela obrigação que lhe cabe de
tomar decisões. Decisões que têm a ver com a vida ou a morte. Aquelas que me
vão caber num futuro próximo e por mais três longos anos.
- E agora o que faço àquele desgraçado que ali está!?
Nem pensar chamar um helicóptero porque a esta hora já não vêm.
Os hélis tinham uma margem de
luminosidade de segurança sem a qual não operavam.
- Se fica ali assim vai ser um sofrimento atroz.
Ninguém encontra soluções que possam ser apresentadas
de viva voz e em boa consciência. Há trocas de olhares silenciosos e cúmplices
que ninguém se atreve a traduzir melhor por palavras. Projecta-se em cada um de
nós uma alternativa animal e fria que apenas encontra sentido na insensatez da
guerra. Uma solução grotesca de resgate de sofrimento a troco de nada, a não
ser por fim a paz apodrecida do silêncio inesperado e o sossego das tormentas
da vida. De olhar fixo no chão, deixo também o meu doloroso recado e afasto-me
derrotado e miserável. Acenam-me com alguns lenitivos de consciência que
procuram vingar a perna do Guia desfeita no Mufuque três meses antes. A memória
do Guia não me serve de desculpa nem me fortalece o ânimo. Talvez porque nem
cheguei a conhecer o Guia. Talvez porque nunca privei com ele. Tentam colonizar
a minha consciência transformando derrotas retumbantes em vitórias que apagam
sonhos de futuros de melhor vida e os transformam em pesadelos negros e sem
retorno. Mundos de promessas e esperanças sem fim, desmoronando-se em ruínas de
pó que nos alucinam e nos peiam a vontade de discernir e libertar de nevoeiros
cegos que nos envolvem, teimando em cobrir-nos e escurecer a nossa consciência
de navegantes perdidos.
Já fugi do palco da minha derrota.
Há um tiro isolado que ecoa longamente no vale. Um eco
que parece não ter fim e que se prolonga nos nossos sentidos. Um tiro a que, de
olhos no chão, ninguém responde nem dá sinais de medo ou cuidado, porque
transporta uma mensagem de dor ou o fim dela. Um tiro rogado em silêncio pelo
próprio derradeiro sopro de vida que o implora. Que me estremece e trespassa a
consciência, qual trovão que ensurdece os meus sentidos e me queima toda a razão.
Que me sinto atingir em cheio no peito e derrubar o que me sobra de ânimo já de
si desfeito. Que me angustia e me deixa por momentos à deriva e sem norte.
Fico em pé enquanto mo permitem os restos de dignidade
que em mim ainda campeiam desordenados e sem rumo. Há um silêncio frio e negro
de sepulcro que emudece tudo. Um sol exausto que também se deixa abater e cai
vencido num horizonte distante de uma vergonha recente mas já podre. Emergem já
sombras frias em prenúncio de um escuro fúnebre que se prepara para envolver
todo o vale e enredar-nos a consciência.
Há uma vontade enorme de fugir e me esconder, de
abraçar e esquecer. Há um “Montijo” que me diz que mesmo que a chuva caia e me
mate a sede de dois dias sob sol inclemente não irá à missa porque Deus por
vezes descansa quando mais dele precisamos.
O tempo de aprendizagem estava prestes a chegar ao
fim. Não sem uma passagem pelo Batalhão sediado em Zemba, a cerca de três horas
de viagem.
A sede de um Batalhão é um local que fervilha de vida de
uma forma diferente duma Companhia. Mais gente, mais movimento, mais vida.
Alberga uma comunidade de oficiais e sargentos três ou quatro vezes mais
numerosa.
A minha passagem por ali tinha por objectivo de
formação conhecer aquela realidade e continuar a aprender os mil e um
fundamentos de uma organização militar em campanha. Ali essencialmente sentir o
envolvimento de um pequeno centro de comando operacional.
O corpo de Alferes tratou de praxar o maçarico com
a conivência do comando, desde que as situações não se revelassem demasiado
cáusticas, a fim de não molestar a imagem do futuro Capitãozinho, de tão frágil
que deveria parecer. Pequenas coisas que quebrassem a monotonia dos dias que,
lentos e fastidiosos, mediavam as operações no mato.
Entrei na escala de serviço de Oficial de Dia ao
Batalhão, uma experiência que, dadas as circunstâncias, não teria grandes
oportunidades de repetir. Era pois oportuno que o fizesse para continuar a
testar as minhas capacidades e melhorar a generalidade dos meus conhecimentos
militares. Se bem que não fosse bem esse o fundamento essencial daqueles quatro
meses no mato.
Por coincidência “calhou-me…” ficar de serviço logo no
dia 31 de Dezembro, dois ou três dias depois de ali ter chegado. Um dia em que
ninguém gostava de cumprir aquela obrigação, porque a passagem de ano era um
motivo de grande festividade, em que o mais agradável seria não ter qualquer
responsabilidade e comemorar sem restrições. Ficar de serviço já era uma
estopada pouco apetecível. Ter que o fazer numa noite daquelas, muito menos
ainda.
Por outro lado, usando como exemplo um ou outro caso
ocorrido nos anos de guerra já decorridos até àquela altura, era sempre tido
como possível um ataque do inimigo nessa noite, pelo que o trabalho de
vigilância era redobrado e a responsabilidade de manter os soldados da guarda
acordados e atentos, um trabalho extra e um fardo acrescido. O Natal e a
passagem de ano eram sempre tempo de medidas de prevenção especiais ou
redobradas. De maneira que um maçarico caído assim do céu vinha
mesmo a calhar. Cumpri sem grandes falhas e terei mesmo sido exemplar na
execução das normas de segurança relativas a um eventual ataque inimigo.
Não tinha vícios adquiridos na monotonia dos dias
quentes do aquartelamento arrefecidos a cerveja gelada e whisky e
crescia-me uma enorme vontade de cumprir e aprender bem. O Comandante
prevenira-me.
Tenha atenção que esta noite é especial e vai ser um
tanto agitada. A segurança do pessoal que vai comemorar a passagem do ano fica
à sua inteira responsabilidade.
Não preguei olho nem um minuto. Calculei que até o
pessoal colocado nos postos de vigilância haveria de querer comemorar a
meia-noite de qualquer forma. O inimigo seria secundário naquela noite. O
problema foi que o inimigo que eu esperava vindo do exterior se me revelou bem
dentro do quartel.
Foram bebedeiras com cânticos e desacatos até ao sol
nascer. O maior problema é que numa altura daquelas o respeito pela hierarquia
militar esvaía-se nos vapores do álcool conjugado com o transe da pressão da guerra
e do isolamento. Tornava-se complexo ajustar algumas regras para que aquela
noite passasse sem consequências de maior, mesmo quando o Margão (Furriel
corpulento e amigo de uma boa briga) não prescindia de atirar um companheiro
pela janela fora, bem à moda do Faroeste, estilhaçando vidros e a madeira meio
ressequida pelo sol. Ou um outro militar, talvez influenciado pela fauna da
região, se tenha lembrado de subir ao mastro da bandeira, gritando a plenos
pulmões às quatro da manhã que só sabia subir e não era capaz de descer. Ou
ainda, com maior ou menor dificuldade, em deitar um Alferes que às três da
manhã queria à viva força pegar num unimog para ir até Luanda (a umas centenas
muito largas de quilómetros) visitar uma amiga, ao mesmo tempo que um Furriel
teimava em ficar nu na parada porque não tinha medo de ninguém e muito menos
dos turras.
Não obstante, tudo se foi resolvendo a contendo até ao
clarear do dia.
A minha maior atrapalhação tinha, no entanto, ocorrido
logo às oito horas da manhã do próprio dia 31 na formatura da parada para o
içar da bandeira, naquele dia com a presença de todos os oficiais, sargentos e
praças do Batalhão.
Naquela altura começavam a aparecer as primeiras
manifestações dos objectores de consciência, corporizadas ali por um jovem aderente
às Testemunhas de Jeová, que se vinha recusando a prestar culto ao que quer que
fosse que não ao seu deus.
No momento da subida da bandeira todos os presentes
tomavam a posição de sentido, determinada pelo toque do cornetim, fazendo
continência ou apresentando arma, como era o caso da guarda. Mas o nosso jovem
mantinha-se impávido na posição de descansar, cumprindo os mandamentos da sua
religião. O caso estava referenciado por todos, excepto pelo Alferes maçarico ali
caído fazia dois dias. O comandante apercebeu-se da situação e, em silêncio
enquanto subia a bandeira, dirige-se ao jovem pela parte de trás da formatura
onde este se integrava. A solenidade do momento, com a continência e devoção à
bandeira por parte de todos os presentes, é interrompida por um enorme alarido
do comandante que já abanava o jovem intimando-o a tomar a posição de sentido,
enquanto lhe ia gritando ordens com esse fim e o obrigava a unir as pernas sem
quaisquer resultados. O militar mantinha-se renitente e desobediente, não obstante
alguma severidade na actuação do comandante.
Repentinamente vem a ordem.
- Oficial de Dia! Este homem já para a prisão!
Lesto, interrompo a minha continência e dirijo-me
célere ao comandante para tomar o preso. Mal pego o jovem pelo braço, que dócil
se deixava levar, sobressalto-me perante toda aquela gente com um pequenino
problema, mas que me esmagava sob o olhar de um quartel inteiro.
Prisão? Mas onde diabo ficava a prisão?
Eu chegara dois dias antes. Não conhecia a maior parte
das dependências do aquartelamento, sendo que a prisão era coisa que eu nem
admitia que houvesse sequer por aquelas bandas.
Naqueles segundos passaram-me pela mente uma catadupa
de pensamentos. Entre eles, o de perguntar ao próprio preso onde era a prisão,
ideia que abandonei rapidamente por a entender ridícula e despropositada. Por
momentos fiquei deveras atrapalhado. Quando já desesperava, despontou-me por
fim uma luzinha bem lá no fundo dos conflitos que me trespassavam, fulminado
que me sentia já por centenas de olhos que me observavam.
- Sargento de Dia! Este homem para a prisão! Ordenei
firme… e aliviado.
Foi como se, à beira dum abismo, tivesse acordado dum
pesadelo. O Sargento de Dia, por certo, havia de saber onde era a prisão.
Retomando a minha posição de sentido, a cerimónia
havia continuado imperturbável, segui pelo canto do olho a direção que seguia o
preso e o seu carcereiro de ocasião, não fosse aparecer-me por ali um outro
caso do mesmo género, sem que me restasse outro Sargento de Dia que me salvasse. Pelo
menos a direcção da prisão eu ficava a saber. Depois logo perguntava o sítio
certo, dobrada que fosse a esquina.
Ninguém deu por nada, tendo ficado a ideia de que o
tinha feito com consciência, usando a normal hierarquia militar apropriada à
circunstância. Quando contei a minha atrapalhação foi o gozo geral e o mote
para novas ideias de outras praxes, que felizmente não tiveram tempo de pôr em
prática, também porque procurei precaver-me suspeitando de tudo o que me
parecia menos racional, o que em termos militares nem sempre se me afigurou
fácil.
Pedro Cabrita
Ex-capitão miliciano
Formado no Mucondo por Taxa Araújo.
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