Dia 21 de março de 2020.
Quase ao mudar o dia, de noite, sou surpreendido por um telefonema: faleceu o
Taxa. O quê? Faleceu o Taxa!
Taxa Araújo, mais
precisamente, João Manuel Taxa da Silva Araújo, Coronel na atualidade mas nunca
esquecido pelos seus militares da CCav2692, como “simplesmente”, o Taxa. foi
Comandante daquela Companhia de Cavalaria de 1970 até ao seu regresso à (então)
Metrópole, em Junho de 1972.
Homem de estatura mediana,
mas de vigorosa imponência pessoal, era então Capitão. Militar de carreira,
logo por isso distanciado por quem ia obrigado (contrariado para uma guerra
desconhecida num país desconhecido, num ambiente hostil apesar da sua majestosa beleza, num presente interrompido por um futuro incerto), era alvo fácil
de descontentamento e de alguma, ainda que disfarçada, aversão.
Não era nada fácil impor a
sua liderança em tal clima psicológico, sobretudo numa época em que começavam a
despontar sentimentos de revolta contra um regime ditatorial que mandava os seus
filhos para o desconhecido, em que a provável morte, ou a incapacidade física,
eram os pesadelos de milhares de jovens. Sentimentos que, naturalmente, se
repercutiam na resistência primária, ainda que contida, a qualquer ordem de
comando militar.
O (então) Capitão Taxa
Araújo, também ele ainda jovem, teve de se defrontar com essa situação. Ainda
Tenente de Cavalaria, na célebre (infelizmente entretanto extinta, apesar de
ser a espoleta do 25 de Abril), Escola Prática de Cavalaria, temida e odiada
por praticamente todos os que ali “caíam” na recruta ou, pior, na especialidade
(de atiradores da cavalaria, a pé), viveu a disciplina rigorosa de tal
aquartelamento militar, onde, na boca de alguém bem conhecido na altura, um
cavalo merecia melhor atenção e cuidado que qualquer soldado.
O Taxa, como era conhecido na
CCav2692, era um homem rigoroso, com uma disciplina de ferro, implacável na
ordem militar, muito sério, por vezes até carrancudo. Por debaixo dessa máscara
militar, obrigatória para qualquer posto de comando tomado a sério, era afável,
risonho, solidário, compreensivo, amigo do seu pessoal. Sem peneiras dos
galões. Homem destemido, de grande coragem, sem medo, de total entrega no
combate, com a frieza e a calma de um verdadeiro militar. Um camarada de armas
na assunção plena do termo. Não queria simpatia, queria disciplina, não queria
desleixo, queria segurança. Como disse num dos últimos almoços de
confraternização em que participou, quando embarcou para África queria “trazer
os seus homens de volta”.
Curiosamente, foi nesse
almoço, numa singela homenagem feita por mais de meia centena de militares, que
disse “já poder morrer descansado, pois já tinha visto o reconhecimento dos
seus”. Só podia estar a disfarçar alguma emoção pois, sentindo a sua verdadeira
obrigação de Comandante, a importância da segurança dos seus militares era
muito mais do que qualquer homenagem.
O Taxa e eu nunca tivemos,
durante a comissão de 26 meses em África, um relacionamento fácil. O Taxa era
militar, eu detestava militares. Mas tínhamos coisas importantes em comum:
éramos ambos frontais (com a devida postura de respeito), éramos ambos muito
disciplinados (com a certeza de que, apesar de alguma incompreensão, isso era
essencial para a sobrevivência da equipa numa guerra de guerrilha em terrenos
tão belos quanto traiçoeiros), ambos tínhamos adquirido o respeito mútuo, mesmo
tendo em conta as diferenças de hierarquia.
Devo ter sido a única pessoa
a quem, pouco antes do embarque de regresso, não viu os seus malões revistados.
Quando, de manhã, durante o serviço de sargento de dia na Companhia, no
Grafanil, ele me chamou para avisar todo o pessoal que iria passar revista às
bagagens, eu, de certa forma alarmado, disse-lhe que já tinha “costurado” as
duas malas de viagem (de madeira) com pregos de cabeça achatada para evitar que
fossem violadas. Se tivesse de as reabrir iria rebentar as “costuras” pois os
pregos estavam cabeça com cabeça. Encarando-me, olhos nos olhos, muito sério,
perguntou-me se eu levava alguma granada, ou arma, escondidas. Retribuí-lhe o
olhar sério e, com todo o respeito, respondi que não, pois farto estava eu de
armas, de balas, de granadas. Fiquei isento da revista. De facto, ele confiou e
teve razão, pois não trouxe nada disso. Mas a sua postura mostrou-me a grandeza
psicológica de quem conhece os seus subordinados.
Tive oportunidade de lhe
relembrar esse acontecimento (como outros, de algum choque pessoal que ocorreram
na dureza do ambiente de guerra). Sorriu. E percebi que para mim ele nunca
seria o Coronel Taxa Araújo, seria sempre o meu Comandante. Como hoje ainda o
recordo. Com respeito e saudade por alguém a quem nunca mais poderei
cumprimentar com um aperto de mão. Mas que terei sempre na minha memória com
uma sentida e respeitosa continência.
A minha admiração ao
Comandante Taxa Araújo. “Sus a Eles” na guerra, gratidão por ter sido o meu
Comandante e de muitos homens a quem devemos certamente ter voltado vivos da
morte certa.
Até sempre Comandante Taxa
Araújo.
Um abraço solidário a toda a
família.
António Gonçalves
Furriel Atirador de Cavalaria
da 2ª Secção do 3º Grupo de Combate da Companhia de Cavalaria 2692, Batalhão de
Cavalaria 2909, em Angola de Abril de 1970 a Junho de 1972
Obrigado Gonçalves pela tua perspectiva do nosso comandante Taxa. De algum modo viste as múltiplas facetas de um líder. E não posso deixar de notar o teu olhar de artista quando fotografaste aquele instante. Melhor que isto só de charuto!
ResponderEliminarOlá, Carlos. Quanto à foto, não é minha, mas como digitalizei a coleção de fotos do Taxa a título gracioso, ele autorizou-me a usar fotos dele (exceto as familiares, obviamente) na divulgação da Companhia.
ResponderEliminarAté sempre Comandante Taxa, Camarada, amigo e irmão mais velho. Um dia, quando Deus queira, voltaremos a abraçar-nos. Júnior
ResponderEliminarSo hoje vi este seu post. Sou a 2ª filha mais velha.
ResponderEliminarAquece-me o coração saber que o meu pai não será esquecido e deixou "marcas" tão positivas nas pessoas.
Gostei muito das suas palavras.
Cumprimentos,
Ines Taxa Araujo