PARTE 1
DO LIVRO “CAPITÃES DO VENTO”
Mucondo
(Excerto)
210º Dia
…- E isto dispara...?
Atirei eu, procurando disfarçar a
tremideira miudinha que se me vinha subindo pelas pernas acima, mas também
preocupado com o estado lastimoso da G3, também ela entranhada de poeira por
todos os lados, quando eu estava habituado a vê-la luzidia e pronta para uma
exposição de armas de guerra em tempo de paz…
- Bem, se formos atacados logo vês se
dispara ou não...
Cinco dias depois da nossa chegada,
aeroporto de Luanda outra vez. Sete horas da manhã com armas e bagagem.
Bagagem, um saco de lona militarizado e
uma pequena mala civil.
Armas; vinte e dois anos de esperança e
uma enorme vontade de vencer para voltar e viver o que prometia a vida.
Destino, Mucondo, Dembos no norte de
Angola.
Transporte, avião Nord Atlas, utilizado
para carga e transporte de pessoal militar, outrora especializado no lançamento
de pára-quedistas.
Cheguei cedo, não fosse perder o meu
primeiro transporte para a guerra ou chegar atrasado ao primeiro encontro com
aquele novo Adamastor longamente prometido.
Primeiro fizeram entrar a carga até chegar
ao tecto do avião e só depois os militares que se sentavam lado a lado, numa
linha única junto à janela e de costas para esta, ao longo de todo o
comprimento do avião.
Para quem vinha de mais de oito horas de
Boeing foi uma mudança demasiado brusca. O espaço era demasiado exíguo. Os
joelhos encostavam-se à carga que ameaçava tombar caso o avião se inclinasse
demasiado para o nosso lado, não obstante as tiras de lona que a abraçavam e
acondicionavam. Alguém entreabria a porta do tradicional humor nacional,
procurando atenuar a tensão que normalmente antecedia o colocar no ar daquele
monstro, com mais de cinco toneladas de carga, só possível numa pista longa
como era aquela do aeroporto internacional de Luanda.
- Então as hospedeiras hoje não vêm?
Ao que uma voz grossa, vincada por longas
noites de nicotina, e humor há muito empedernido, retorquia.
- Não! Hoje é o nosso Sargento que te faz
a cama e ajeita a almofada...
O ruído dos motores de hélice era
ensurdecedor, tornando quase impossível falar com o passageiro do lado. Era um
barulho metálico de esforço nos limites das centenas de cavalos que os moviam.
O avião já corre pesadamente pela pista fora, comendo todos os metros de
asfalto disponíveis, em busca de um último empurrão que nos atirasse para o ar.
Ouvia-se um ranger metálico saído de vários pontos, sem se distinguir ao certo
se era a carga se a própria estrutura do avião. Optávamos positivamente pela
primeira hipótese. A viagem ia durar pouco mais de uma hora até ao primeiro
destino, Santa Eulália, donde eu seguiria para o Mucondo. O avião rumava depois
para outros destinos, distribuindo alimentos frescos e víveres de primeira
necessidade por vários aquartelamentos do norte de Angola.
Ao meu lado sentava-se um jovem Alferes
mais velho do que eu, portanto um velhinho (gíria militar
utilizada para distinguir os que já tinham algum tempo de guerra,
distinguindo-se assim dos maçaricos) e aparentemente pouco dado a
conversas.
Já com uma boa meia hora de viagem, o meu
companheiro continuava a ler uma revista de actualidades e não parecia
manifestar grande vontade para dialogar. É certo que o ruído não convidava a
grandes trocas de impressões, mas sempre seria uma boa forma de passar o tempo.
Mexi-me e remexi-me várias vezes no meu
lugar procurando, sem êxito, chamar à atenção do meu companheiro de viagem. Era
óbvio que o nervoso ali era eu. Numa volta de página, e antes que se embrenhasse
de novo na leitura, disparei à sorte:
- Você vai ficar aqui em Stª. Eulália?
- Sim, saio aqui! Depois sigo para o
Mucondo na coluna da Companhia que vem buscar os géneros.
Mucondo? Não devo ter conseguido disfarçar
o meu repentino entusiasmo quando ouvi a palavra Mucondo. Agitei-me no lugar e
voltei-me para o companheiro Alferes, como querendo dizer que aquela presa eu
não iria largar mais.
- Olha, tem piada que eu também... saltei
eu como se tivesse encontrado um ancoradouro perdido no meio de uma longa
tempestade. O nosso Alferes, que se preparava para voltar à leitura e
manifestava pouca disposição para dar continuidade àquela conversa com um maçarico de
farda novinha em folha e galões reluzentes estreados cinco dias antes,
interessa-se repentinamente pela conversa fechando a revista, marcando com um
dedo apertado pelos outros dois a página em que ficara.
- Para o Mucondo? Mas o que é que vais
fazer para o Mucondo? Aconteceu lá alguma coisa? Morreu alguém?
A guerra era assim. Alguém que chegava de
novo era frequentemente mau sinal. Ou vinha substituir uma baixa, ou alguém
castigado que era enviado para um buraco maior que aquele em
que se encontrava antes.
O nosso Alferes vinha de gozar umas férias
em Luanda, pelo que não tinha notícias do Mucondo havia dias. Ficou tão
intrigado quanto preocupado.
- Espero que não. Vou para lá fazer um
curso de Comandante de Companhia, mas também sei poucos pormenores. Está tudo
escrito aqui num envelope secreto que trago para o Capitão lá da Companhia,
respondi eu preparando-me para não largar mais aquela fonte de notícias e mais
que um amparo para o meu estatuto de náufrago daquele oceano novo e incerto em
que me preparava para mergulhar.
O meu companheiro de viagem, e pelos
vistos nos próximos quatro meses de guerra (tempo que se previa ir durar o
estágio) queria saber tudo daquela novidade que ninguém conhecia e vai de me
metralhar com mil e uma perguntas sobre aquela história do curso de Comandantes
de Companhia, embora sem desmarcar a página da revista que permanecia entre
dedos. Prestadas todas as informações de que dispunha, tratei de cobrar a minha
parte. Embora eu tivesse prometido a mim mesmo que não voltaria a perguntar o
que quer que fosse sobre a guerra, aquilo ali era diferente. Era conhecimento
de causa. Eram notícias directas da fonte das minhas preocupações. Como era a
guerra, se havia muita porrada, como eram as condições, enfim, acho
que não parei de metralhar o camarada enquanto não saciei a minha sede imensa
de conhecer o que me esperava. As respostas sossegaram-me de certa forma, mas
não por muito tempo. Aquele era uma dos nossos conhecidos pintores de aguarela
suave. A Companhia estava no local havia seis meses, não tinham baixas, embora
tivessem já ocorrido umas escaramuças sem grandes consequências. Não entrou em
grandes pormenores, nem manifestou muita vontade em falar da guerra, por mais
que a minha ansiedade a isso se dispusesse. Acabou mesmo por regressar à
leitura da revista quando o comecei a massacrar com questões miudinhas de maçarico acagaçado.
Viria a revelar-se no futuro um rapaz bastante reservado e introvertido, o
camarada Alferes Santos de seu nome.
O Nord Atlas inicia a descida para Stª
Eulália. Voávamos relativamente alto, porque não seria a primeira vez que
apareciam furos de balas na fuselagem do avião. A paisagem muito verde que
sobrevoávamos desde Luanda é abruptamente interrompida por uma clareira enorme
de terra ruiva, matizada aqui e ali por tons claros que contrastavam com outros
mais escuros. Aquela enorme aberta desbastada na mata estava salpicada de
casario coberto a chapa, que se presumia ser de zinco, embora a sua cor natural
acinzentada se tivesse suavemente harmonizado com o tom ruivo da paisagem. Pela
disposição das construções, percebe-se não ter havido ali grande preocupação
arquitectónica, transparecendo que tudo fora feito muito à pressa e sem grandes
perspectivas de serventia a longo prazo. Nada de construções definitivas. Tudo
parecia que tinha ido sendo acrescentado à medida das necessidades. Espaço para
esse efeito era o que não faltava. Tratava-se de instalações militares,
essencialmente de protecção e apoio à pista, um elemento estratégico de
primordial importância no apoio logístico aos aquartelamentos da zona. À
entrada do aquartelamento vêem-se sete ou oito viaturas alinhadas, coloridas no
mesmo tom de pó, tornando-se evidente que a zona é varrida com frequência por
ventos que o levantam no ar, enxameando tudo da mesma cor. Deduzo que se trata
de um depósito de ferro velho, onde se vão despejando exaustas as peças da
guerra que já cumpriram a sua missão.
Faço a minha segunda aterragem na
perfeição, se bem que o ruído produzido pelo trem de aterragem sobre a pista de
terra batida nos faça momentaneamente crer que algo se vai partir a qualquer
momento. O ruído é enorme e tudo treme; carga, estrutura e passageiros. O avião
faz levantar uma enorme nuvem de poeira, ficando em parte explicada a cor ruiva
que se espalha por toda aquela região.
Imobilizado o Nord Atlas, ponho o meu
primeiro pé na guerra. A recepção não podia ser melhor. Havia agitação na pista
junto a uma Dornier (DO) pequeno avião monomotor utilizado para múltiplos fins
militares. Procedia-se a uma evacuação. Um jovem soldado pisara uma mina horas
antes, ficando sem uma perna. O Alferes Santos reconhece o grupo de militares
que apoia a evacuação e precipita-se na sua direcção. Volta momentos depois já
com a DO a fazer-se apressadamente à pista.
- Era o Guia, um militar da nossa
Companhia. Balbucia meio acabrunhado.
- Do Mucondo? Indaguei eu um tanto incrédulo
e na esperança de ter ouvido mal ou haver por ali alguma confusão.
O nosso amigo percebeu a minha agitação.
- Sim, mas não penses que te quis enganar
quando disse há pouco que não havia grandes problemas na zona. Esta é a nossa
primeira baixa. Só que coincidiu com a tua chegada.
Fiz por acreditar. Ou melhor; eu queria
mesmo era acreditar que o Santos não me tinha ocultado a verdadeira situação na
zona, só para não me desanimar.
- Bem, temos que ir embora. São quase
horas do almoço e as viaturas são necessárias para irem levar pessoal para a
mata.
- Sim, mas e quando é que chegam as
viaturas? Perguntei eu ainda um pouco confuso com o ambiente gerado pelos
acontecimentos à chegada.
- Então não viste as viaturas estacionadas
ali à entrada, quando vínhamos no avião?
- Não, eu vi foi algo parecido com um
cemitério de viaturas, embora de facto estivessem muito alinhadinhas.
- Pois, chama-lhes o que quiseres, mas é
naquelas que vais para o Mucondo.
O dia já estava quente e radioso. O
costume em África. Mas os acontecimentos sucediam-se numa vertigem e complexidade
demasiadas para que eu pudesse usufruir de tanta luminosidade e tanta beleza
natural. Os aromas sim, começavam a inebriar-me os sentidos, confundindo-os ao
mesmo tempo.
Meio tonto, peguei na minha tralha e
dirigi-me para aquele recentíssimo ex-cemitério de viaturas militares, na
crença de um novo milagre das rosas que transformasse aquilo que vi lá de cima
num transporte seguro que me levasse ao meu último destino daquela longa
viagem. De facto, as viaturas (Unimogs; pequenos carros de rodado alto que
transportavam nove a dez militares sentados costas com costas em bancos de
madeira dispostos longitudinalmente) estavam todas em perfeitas condições. O
que tinham era uma camada de pó de tal ordem, que se tornava praticamente
impossível descobrir a sua cor militar original verde acinzentada. Não se
tratava ali de falta de cuidado no tratamento das viaturas. Os caminhos
empoeirados (as picadas) eram autênticos trilhos de solo lunar, fazendo
praticamente perder de vista a viatura da frente ou de trás, logo que a marcha
se iniciava. A viatura que seguia à frente (nas colunas que todos os dias se
movimentavam em múltiplas actividades operacionais e outras) tinha sempre uma
contradição difícil para resolver, razão pela qual poucos reivindicavam essa
posição, aparentemente mais cómoda e limpa. Era de facto a única que não
apanhava com aquele pó insuportável, mas era também aquela que maior
probabilidade tinha de pisar uma mina. Ao princípio nunca havia voluntários. O
sistema era rotativo. Depois, à medida que o tempo foi passando, o medo de um
estouro que os atirasse a cinco ou dez metros de altura era rendido pelo
cansaço de comer pó vermelho quilómetros a fio e o lugar da frente tinha que
ser rateado porque quase todos eram voluntários.
Os militares do Mucondo que constituíam a
coluna olhavam-me com uma mistura de curiosidade, respeito hierárquico e alguma
vontade de rir que mal disfarçavam. Os camuflados que envergavam, já gastos por
seis meses de guerra, traziam tanto pó quanto as viaturas. Na cara, suja quanto
o resto, distinguia-se uma zona limpa denunciando o lenço aplicado abaixo dos
olhos, para proteger o nariz e a boca, quais bandoleiros do faroeste em terra
de índios. Índios que ali trocavam a pele vermelha pelo tom do café, cinzelada
por séculos de torreira do sol, mas que também lutavam por causas e ideais
semelhantes, embora sem toucados de muitas penas, que trocavam por outras penas
e canseiras transportadas no olhar, que baixavam quando se cruzava com o nosso.
A vontade de rir vinha-lhes da minha farda
meio descabida para aquela situação; um número dois garboso e aprumado de calça
castanha e camisa verde seco, tudo muito bem engomadinho, completada com a
tradicional boina acastanhada de duas fitinhas, verde e vermelha, pendendo
atrás. O gozo que já anteviam era o de imaginarem em que estado ia eu chegar ao
Mucondo depois da viagem.
O camarada Alferes Santos apercebe-se a
tempo da situação e desencanta um casaco camuflado num militar mais precavido,
sugerindo que o vista e o feche bem até acima. Cada vez mais confuso com os
acontecimentos da chegada, não percebi logo à primeira, por que razão me ia
abafar num camuflado, com o calor que já se fazia sentir àquela hora.
- Daqui por cinco minutos já vais perceber..., dizia-me
o Santos perante o meu ar perplexo.
Mas o camuflado não era suficiente para a
viagem. Faltava algo mais.
Com poucas palavras, como já se percebera
que era a sua maneira de ser, o Santos atira-me ostensivamente uma G3 para as
mãos.
- Isto é para o caso de termos algum
encontro inesperado pelo caminho. Quando chegarmos lá devolves a arma ali ao
nosso condutor, porque, em princípio, não lhe vai fazer falta para a viagem. O
“em princípio…” não me tranquilizou nada, se é que alguma coisa me podia
tranquilizar naquele ambiente de abismo com uma guerra lá no fundo onde me
preparava para mergulhar.
Havia cerca de três meses e meio que eu
lidava com a G3. Era capaz de a desmontar e voltar a montar com os olhos
vendados em muito pouco tempo, que era uma competição que de vez enquanto
fazíamos lá na caserna ao cronómetro. Saber desmontar e montar a arma em pouco
tempo, era um treino exigido do qual poderia depender a sobrevivência do
combatente, caso esta se encravasse num momento de aperto menos oportuno. Tínhamos
feito algum treino de tiro, muita instrução táctica, ordem unida, em suma,
conhecia bem a arma e estava familiarizado com ela, enquanto apetrecho tão
importante como as botas pesadas e bem engraxadas que calçava ou os arreios que
envergava. Mas aquele momento teve um significado muito especial que tenho
alguma dificuldade em explicar.
De repente, aquilo deixou de ser um
instrumento militar de adorno do combatente, um adereço da tropa, um factor de
chatice de ter que transportar às costas (cerca de 3,5 Kg), sendo preferível
que ficasse na caserna deixando-nos mais soltos e leves. Já não era uma arma
que apenas funcionava como instrumento de morte nos breves momentos da carreira
de tiro, em que nos exigiam uma série de protocolos para evitar acidentes. Onde
todos os cuidados eram poucos para que ninguém se ferisse. Onde nos davam uma
dúzia de balas para treino de pontaria e todo o outro tempo de instrução
andávamos com o carregador vazio, como se transportássemos um objecto que
enfeitava a imagem do militar, sem mais nenhuma outra servidão. Aquele
instrumento que me colocavam agora nas mãos tinha um carregador de vinte
munições, uma delas já na câmara pronta a ser disparada com um simples
pressionar do gatilho. Apenas uma pequena patilha, que accionávamos com um
dedo, separava a prontidão para matar, da segurança da arma para não ferir um
companheiro num acidente fortuito. Terminara ali, naquele preciso momento, a
função de instrumento de carregar às costas, de pesar dolorosamente no treino
das longas caminhadas (desafiando a vontade de a atirar fora) de a apresentar
imaculadamente limpa nas inspecções minuciosas e ridículas do comandante de
pelotão – um maçarico de Mafra para quem contava apenas o
aspecto e não a funcionalidade. Ia passar a ser, nos meus próximos trinta e
dois meses e meio de guerra, o instrumento de que poderia depender a vida ou a
morte, a companhia inseparável de todos os momentos, quer de sono ou acordado.
De um momento para o outro, deixava de importar que estivesse rigorosamente,
limpa para passar a estar imperiosamente funcional.
Tornara-se ainda mais pesada. Tornara-se
verdadeiramente mortal. E era imprescindível que o fosse naquelas
circunstâncias.
- E isto dispara...?
Atirei eu, procurando disfarçar a
tremideira miudinha que se me vinha subindo pelas pernas acima, mas também
preocupado com o estado lastimoso da G3, também ela entranhada de poeira por
todos os lados, quando eu estava habituado a vê-la luzidia e pronta para uma
exposição de armas de guerra em tempo de paz.
- Bem, se formos atacados logo vês se
dispara ou não...
- ...?!
Engoli em seco. Engoli também o pó que
timidamente e sem convicção soprei do cano da G3 e da janela de ejecção, que o
aspirante de Mafra, imberbe profissional das guerras de brincar nas tapadas
contíguas ao quartel, tanto embirrava que não podia ter um grãozinho de poeira
que fosse, porque maculava a devoção que eu deveria ter pela arma.
Como te sopraria com algum prazer aquele
pó todo em cheio no teu narizinho arrebitado, pelas cinquenta flexões de braços
que me obrigaste a fazer na parada por um hipotético cagalhão de mosquito, que
descortinaste no tapa-chamas da minha arma, numa tarde em que estarias mal
disposto e te apetecia chatear alguém e exacerbar a tua prepotência militar.
Como me ri ali mesmo, naquele momento breve mas pleno de significado, das
parvoíces que te mandaram ensinar-me em Mafra. Como tive medo de que afinal não
me servissem para nada. Eram zero, tempo perdido, tempo vazio, como vazio era o
meu bornal de conhecimentos da guerra, de armas de sobrevivência na mata hostil
em que me preparava para penetrar pela primeira vez, temeroso e vulnerável.
Tempo do meu tempo de aprender a não morrer. Tempo que usaram e desperdiçaram
preocupados com a minha farda, a bota engraxada, as continências, a
subserviência, o zelo e o aprumo para me passear na parada do Rossio.
Dignificar a farda e a instituição. Respeitar e obedecer. Morrer, se a sorte me
abandonar, pela pátria, pela honra (com ou sem ela). Tudo pela pátria, tudo
pela grei. E afinal, por mim nada. A minha segurança, o meu bem-estar. A minha
opinião sobre a guerra. Se a achava justa. Se 1400 dias de guerra eram um
sacrifício justo e se “aquela pátria” os mereceria.
“Sus, a eles!” era o lema que se lia
sobrelevando o emblema da Companhia desenhado na frente do Unimog, alimentando
o fervor e a unidade dos militares nos momentos de maior desânimo.
A viagem era relativamente curta. Cerca de
trinta e cinco a quarenta minutos. Aperrei a G3 voltada para fora como mandavam
as normas. O dedo ao longo do guarda-mato, pronto para entrar em acção ao mais
leve sinal de perigo. Olhos no mato procurando movimentos suspeitos que vi.
Muitos! Mas ninguém se mexeu... Só eu vi.
Os soldados apontavam também as armas para
fora como se fosse uma obrigação e falavam descontraídos dos trágicos
acontecimentos da manhã lamentando o acontecido. Aquela viagem era uma rotina
que acontecia duas ou três vezes por semana. Ninguém se preocupava com o
inimigo. Aparentemente só eu. Aparentemente, não! Realmente só eu…
A poeira já me sufocava e o calor também.
Subi ainda mais a gola do camuflado até aos olhos. O meu sapato preto,
esmeradamente engraxado pela manhã, ia passando lentamente a um tom camurça que
eu olhava com tristeza nos momentos breves em que tirava os olhos da mata.
Limpei um deles passando-o pela parte de
trás da calça da perna contrária. Fiquei por momentos com dois sapatos
completamente diferentes. Um alçado em pezinho de cinderela, pronto a desfilar
aprumado na parada, o outro arvorado em guerreiro debutante que dava os
primeiros passos numa dura e longa batalha, cujo brandir das armas me estalava
já na cabeça e confundia o espírito desalinhado com o torpor do corpo
vergastado pelos balanços daquele autêntico touro enraivecido que ameaçava
lançar-me borda fora.
O contraste daqueles dois sapatos
desanimou-me ainda mais. Mesmo assim desisti de limpar o outro. Poucos momentos
depois voltavam a ficar iguais de novo. Os balanços do Unimog continuavam a
ameaçar atirar-me borda fora. Depressa aprendi quais as cicatrizes da picada
que produziam os maiores saltos. Agarrava-me onde podia quando o balanço era
mais forte, para voltar logo de seguida à minha G3 emprestada, que continuava
pronta a disparar, mal um macaco mais atrevido se propusesse confundir a minha
atenção desmedida aos movimentos do inimigo, correndo obviamente risco de
morte. Numa curva mais apertada, em que a velocidade diminuía um pouco mais,
aproveitei para perguntar ao soldado que ia ao meu lado se andavam sempre
naquela velocidade, que me vinha deixando em pânico desde o primeiro minuto da
viagem.
- Tem que ser meu Alferes. Porque assim é
mais difícil eles atacarem a gente...
- ... além disso, já estamos atrasados
para o almoço.
Esta segunda parte da frase foi a que me
pareceu ser a de maior preocupação.
Desliguei-me um pouco da minha inquietação
primeira de me resguardar de algum ataque inimigo e procurei descodificar
aquilo. Perpassou pelo meu espírito de que o verdadeiro inimigo era bem
capaz de não se esconder no capim, mas seguir ali viagem comigo. Qual dos
dois motivos se apresentava mais reconfortante para aquela autêntica prova todo
o terreno?! Não nos atacarem, ou chegarmos a horas do almoço? Ficarmos por ali,
sem glória nem proveito, em mais um dos muitos acidentes meio estúpidos que
ocorreram na guerra, era secundário. O importante era que não ficássemos numa
emboscada, ou chegássemos a horas para o almoço. Balanceei-me entre os dois
pontos de vista e a primeira coisa que me veio à cabeça foi mandar parar a
viatura e dizer:
- … Então vão andando que eu vou a pé!
Aquela lógica de guerra começava cedo a
roer-me o meu tempo recente de desconforto daquela viagem de pó, de calor, de
um soldado sem perna, de fantasmas de inimigos por todo o lado, de macacos que
eu não estava a ver como me viriam trazer bananas à minha rede de preguiça, de
coração apertado pelos medos que se avolumavam em cada minuto, em cada curva,
em cada salto, e eu sem fome nem vontade de continuar viagem, inundado que me
sentia já de saudades de tudo o que deixara para trás.
A cerca de cinco minutos do aquartelamento
passámos por uma fazenda de exploração de madeira e café. A única da zona num
raio de cerca de cem quilómetros. O capataz acenava-nos com as duas mãos da sua
mansão colonial. Alguns negros, com ar de maltrapilhos, vagueavam indolentes no
terreiro enorme, aparentemente sem nada que fazer. Outros, agachados,
sentando-se nos calcanhares, ficavam em círculo em redor de paus que ardiam e
soltavam um fumo branco que subia a pique para o céu azul, recortado por
árvores seculares que circundavam aquele espaço.
Mulheres, com crianças que dormitavam nas
suas costas seguras por um longo pano colorido que atavam à frente, lavavam
latas ou varriam o chão com um molho de ramos de arbusto, interrompendo a faina
para também acenar à tropa que passava apressada a caminho do almoço tardio e
fugia da emboscada do inimigo astuto que espreitava em cada curva.
Há uma subida que encaracola um pouco e
acalma aquela loucura em que vínhamos desde Stª Eulália. Mesmo em baixa
velocidade o inimigo não se dignou aparecer. Continuava a faltar também o
almoço. Ao longe, no fim de uma longa recta e no cume de uma elevação de
terreno, avisto por fim o aquartelamento. As viaturas voltam a acelerar mais
ainda. A velocidade é agora bem maior tirando proveito daquela recta de piso
aceitável. O soldado que vai ao meu lado diz que já lhe cheira a rancho e
incentiva com gritos o condutor a pisar no acelerador. Aponto o nariz na
direcção certa e nada me cheira que se revele aroma conhecido.
Cheiros novos, sim.
Cheiros fortes que se exalam da terra e do
arvoredo imponente de árvores seculares que se agigantam. Outros que vêm do
capim muito verde que brota viçoso e alto de tapar um homem, qual seara
alentejana ondulante trazendo aos meus sentidos sons conhecidos de mares
calmos, ali vazios de marinheiros que os naveguem. Oceanos de nostalgia, que eu
sabia que não me iriam abandonar quando o tempo de angústia começasse corromper
as minhas memórias de mouro perdido em novas guerras de África, retinindo ainda
os sons longínquos de trombetas esquálidas anunciando os desastres das areias
quentes e traiçoeiras dos desertos do norte, vangloriados em madrugadas de
esperança eterna de sebastianismos patrióticos, que nos venderam envoltos em
nevoeiro de manhãs frias da nossa memória de povo. Mares verdes de esperança
que acoitam agora outros gigantes de menor peso mas com a mesma raiva de
sentimento de chão invadido e consciência devassada.
E nós, montados nas novas caravelas de
quatro rodas que voam para fugir ao inimigo em busca de um almoço tardio, já
sem cruzes de pregação nas velas que outrora cativavam as almas fáceis dos
gentios e os agrilhoavam a padrões sem virtudes nem sentido, mas que por fim se
obstinavam contra os que lhes prometeram os céus e os confortos de alma terrenos
que nunca tiveram.
Uma hora de guerra está vencida.
Entramos na cerca de arame farpado que
protege o aquartelamento, situado numa pequena elevação suficiente para
garantir alguma segurança. Espanto-me com tudo. Nada correspondia ao imaginado
a partir daquilo que nos contavam em Mafra. As viaturas alinham-se emparelhadas
lado a lado, desligando os motores a um sinal conhecido do comandante da
coluna. Os soldados apeiam e alinham em silêncio à frente das viaturas para o
cumprimento de um ritual de segurança imprescindível. O tirar da bala da câmara
da espingarda, que de novo retorna ao carregador a fim de evitar um acidente de
caserna.
Cumpro com consciência de aluno de grau
zero aquela formalidade nova para mim. Fico meio escondido na fila de trás, onde
aprendo como se faz, não me expondo ao exame da minha incultura dos preceitos
da guerra que só conhecia dos livros e do que me tinham ensinado os professores de
Mafra. Dou pois início a uma longa aprendizagem das coisas da guerra que ali me
traziam.
O Santos aproxima-se. Vem cobrar-me o
preço da minha ingenuidade de guerreiro aprendiz. Pergunta-me se já tinha
percebido a finalidade do camuflado que me forneceu e se tinha visto
muitos turras pelo caminho.
Eu batia os pés no chão, tentando
rejuvenescer a cor preta de há uma hora atrás do meu sapato e sacudia o
camuflado e a boina, sob a contestação do Santos.
- Pára lá com isso! Quanto mais te sacodes
mais pó levantas ou ainda não te chega o da picada?
Anui e deixei ficar tudo como estava.
Talvez o quartel tivesse uma lavandaria...
No entanto, antes de nos dirigirmos à
messe, quis ainda tirar uma dúvida que me tinha surgido já perto da chegada. A
uns bons duzentos metros do aquartelamento, e paralelo à picada por onde
tínhamos chegado, havia uma tira de terreno com vinte ou trinta metros de largo
e uns quatrocentos ou quinhentos de comprimento. Tinha erva rasteira que se
percebia ter sido cortada, mas ao meio havia uma pelada a todo o comprimento.
Aquela faixa de terreno diferenciava-se da restante paisagem, notando-se ali
algum trabalho de capinagem e conservação, embora rudimentar. Naqueles cerca de
quinhentos metros formavam-se duas autênticas ondas no terreno cujo desnível
seria seguramente superior a uns bons três ou quatro metros. Se nos
colocássemos ao nível do chão no plano superior do início daquela faixa de
terreno e uma viatura tipo camião fizesse o percurso, a meio desapareceria por
completo. Aquilo intrigou-me, mas eu tinha suspeitas nas quais não queria crer.
O que era aquilo?
- É a pista de aviação..., responde o
Santos já a rir.
- Mas e aterra ali alguma coisa com asas? Perguntei
eu quando começava a ver as minhas suspeitas com jeito de confirmação.
- Aterra e levanta. Fazem-te confusão as
lombas, não é? Pois, mas parece que as deixaram de propósito. Como a pista é pequena,
o avião faz a lomba e quando chega à crista da onda projecta-se mais facilmente
no ar. Além disso na descida aumenta mais facilmente de velocidade.
Eu nem queria acreditar. Aquilo ia
contra todas as regras que o meu espírito concebera ser possível em termos de
aviação.
- Não estás a gozar? Ainda retorquia
eu, na expectativa de se tratar do cumprimento de um ritual da guerra, uma
praxe, ali na forma de uma graça para aldrabar maçarico. Mas não! Era mesmo
verdade. De qualquer forma prometi a mim mesmo ficar de olho e esperar para ver
ali aterrar o que quer que fosse.
Dirigimo-nos para a messe, enquanto eu
ainda me voltava para trás por mais duas ou três vezes, esforçando-me por
acreditar que aquilo que eu via dali era uma pista para aviões, ou, quem sabe,
alguma miragem que a perturbação daquelas primeiras horas me pudesse ter
provocado, alimentada pelo Santos já sem paciência para mais explicações.
O aquartelamento do Mucondo era uma antiga
missão adaptada às necessidades da guerra, situado no cimo duma pequena
elevação de terreno; a mais alta da zona. Havia uma construção central, a único
em alvenaria, que foi rodeado de pré-fabricados meio toscos e já envelhecidos
pelo uso, adaptados às necessidades duma Companhia de Cavalaria, empenhada numa
guerra de guerrilha, e que se dispersavam sem muita ordem pelo espaço do
aquartelamento. Nas traseiras daquele pequeno edifício tinham sido acopladas
algumas divisões em tijolo e zinco destinadas às messes de oficiais e sargentos
e alguns quartos.
Entrámos na messe, eu e o Santos, perante
o olhar admirado do Capitão que, ainda à mesa tinha acabado de almoçar com os
restantes oficiais da Companhia, ao ver-me de continência em riste
apresentando-se... o Alferes miliciano 133767/69 colocado naquela
Companhia.
- Mas eu não pedi nenhum Alferes...,
respondeu com ar de interrogação e testa franzida.
Apresentado o meu envelope, lacrado por
tudo quanto era dobra e profusamente carimbado de “secreto”, o Capitão,
retirando o cigarro meio fumado da boquilha e deslocando-a para o canto direito
da boca, saiu de imediato em direcção ao seu gabinete, abrindo o envelope.
Fiquei por ali fazendo as apresentações
aos restantes Alferes, incluindo o médico, submetendo-me ao interrogatório
natural que a minha condição de espécie de ave rara suscitava, que no caso nem
era bem rara, mas única e primeira.
Aquela sensação de incredulidade estampada
no rosto, já experimentada por mim meses antes, era o que eu via agora nos meus
interlocutores, ainda cépticos quanto à verdadeira dimensão e os propósitos que
me levavam ali. O Capitão regressou minutos depois, informando-me que já estava
inteirado da minha missão, após ter lido toda a documentação que eu trazia
comigo. Não fez mais comentários, nem naquele momento, nem em qualquer outro
dos quatro meses que havia de ali ficar. Jamais tive conhecimento do conteúdo
daquele envelope em papel pardo forte e impenetrável, como se tivessem algum
receio de conhecimento público daquilo que se preparavam para consumar.
A Companhia encontrava-se em plena
operação no mato, de que resultara o ferido evacuado naquela manhã. O Capitão
regressava, pois, à operação, terminado que era já o almoço. Antes de partir
deixou ordens ao Alferes que o substituía no comando da Companhia enquanto
estava fora. Ordens que se relacionavam comigo, como vim rapidamente a compreender.
Entre elas, o meu alojamento e uma visita guiada às instalações do
aquartelamento e rede periférica de arame farpado, bem como a distribuição do
necessário armamento para o desempenho da minha missão. O Capitão ia ficar fora
cerca de três dias, pelo que deixou ainda outras instruções que só foram
aplicadas nos dias seguintes. A que ele próprio mais vincou foi a minha
primeira experiência no verdadeiro teatro da guerra. Uma coisa curta para me ir
habituando, mas com algum significado.
Logo pela manhã do dia seguinte (menos de
24 horas depois de ter ali chegado) foi-me entregue o comando de um pelotão com
a missão específica, determinada pelo Capitão, de patrulhar toda a zona onde
naquela manhã tinha rebentado a mina. Tudo fazia parte do plano transcrito no
tal envelope. Submeter o jovem futuro Capitão ao maior número de testes
possíveis, onde demonstrasse as suas capacidades de comando, bravura (leia-se,
se tinha cagaço ou não) relação com os subordinados e ao mesmo
tempo começar a familiarizar-se com a guerra, porque muita estava por vir.
As primeiras experiências, qualquer que
seja o seu âmbito, são aquelas que mais nos marcam. Ali tudo se constituía em
novidade, que a angústia e o desconforto pela incerteza de um futuro pouco
previsível mais acentuavam e transformava cada episódio num marco de
recordações que nos vincam a memória para todo o sempre. Pouco mais de quinze
dias antes, passeava-me eu por Mafra e arredores, volteando em marchas e
guerras de faz de conta, roubando fruta nos pomares da zona para matar a fome
quando as provas se estendiam para lá da hora do almoço, ou noite dentro, o que
acontecia com alguma frequência, provavelmente para nos habituarem já às
agruras mais reais que nos esperavam.
De repente, estou à frente de trinta
homens no epicentro da guerra prometida, com os acontecimentos trágicos da
manhã anterior ainda bem frescos na memória de todos. Tudo ali podia acontecer.
A minha falta de experiência e imaturidade podiam determinar um acidente por
desconhecimento de regras básicas de segurança nos deslocamentos. Os soldados,
o que esperam é que quem os comande os conduza pelos melhores caminhos e tome
as melhores decisões. Não é da sua conta inquirir das brutalidades do poder e o
desprezo que demonstra pela vida e a segurança das tropas que envia para a
frente de guerra. Eu tinha consciência disso e o Capitão também, razão pela
qual me atribuiu o melhor grupo da Companhia. Havia que cumprir o que vinha
determinado nas instruções contidas no documento que eu trouxera. No essencial,
submeter o candidato a todas as experiências possíveis e testar as suas
capacidades ao limite.
Para lá do teste havia a aprendizagem. Em
quatro meses era necessário (e urgente, muito urgente) transformar um jovem
cadete com seis meses de instrução básica militar, num Comandante de Companhia,
coisa que normalmente demorava anos e tinha por base uma formação militar
académica específica, bem como, pelo menos, uma comissão de dois anos no teatro
de guerra como subalterno. O tempo era ridículo de tão curto e a missão
complexa e arriscada, quer para quem a tinha concebido, quer para quem se via
envolvido nela. Isso eu percebi e o Capitão deu-me a entender, embora sem
comprometer o sigilo das instruções que recebera.
Naquela manhã, disfarcei o melhor que pude
o meu nervosismo e ansiedade. Os soldados procuravam ler em todos os meus actos
os indícios do medo, que calculavam obrigatório, o que os faria
sentirem-se velhinhos naquelas andanças do mato.
Na caserna, um calendário com uma deusa de
beleza estonteante (que apaziguava outras tantas dores de isolamento, quanto as
da fome e sede do mato) contemplava já cento e oitenta dias riscados da vida de
cada um deles, ratificando uma insofismável sabedoria das coisas da guerra e
uma maioridade que eu não detinha, não obstante os galões reluzentes nos meus
ombros. E quanto mais reluzentes, mais amaçaricados e menos de
fiar.
Os velhinhos do mato eram
uma classe superior distinta dos novatos que nada sabiam. Um bacharelato no
domínio dos nervos e do conhecimento do terreno e dos seus mistérios, vincado a
todo o momento e nas circunstâncias mais diversas e difíceis. Os furriéis, já
mais matreiros e observadores, liam-me os actos com desusado interesse,
procurando falhas que a minha falta de experiência por certo ditaria, dando azo
a um ou outro acto exibicionista, sobrepondo ou corrigindo o comando
hierárquico ali esmagado pelo conhecimento adquirido naquela espécie de curso
intensivo de seis meses de luta pela sobrevivência.
Julgo, no entanto, que não terão percebido
“quantas minas eu pisei” naquele dia. E os cuidados com que escolhia o palmo de
chão onde colocar graciosamente o meu pezinho, por vezes mesmo na
pontinha do pé, procurando calcar a menor superfície de terreno possível,
reduzindo assim em cerca de 50% a probabilidade de acertar na mina. Nem terão
entendido os percursos esquisitos que escolhi para a marcha, invocando
instruções operacionais, mas que marcavam a necessidade de evitar todos os
potenciais pontos de colocação de minas, no meu entender teórico, claro, mas
ridículos e excessivos, embora acatados à luz das “ordens” recebidas. Ainda que
os tenha obrigado a andar fora dos caminhos obviamente seguros, porque mais que
calcorreados e pisados, espezinhando silvas e espinheiras que maltratavam o
corpo e uma divisa de seis meses de velhice que com garbo
ostentavam. Quinze dias antes, em Mafra, o inimigo era o dono de um
pomar meio aniquilado pela fome de trinta cadetes, que na pior das hipóteses
nos ameaçava com uma queixa no quartel, a qual, sempre que concretizada, nunca
chegava a bom termo, porque as fardas todas iguais confundiam as caras,
tornando ausentes os réus materiais dos prejuízos. Em quinze dias, uma laranja
roubada para mitigar a fome, era substituída por um pequeno objecto capaz de me
destruir ou alterar por completo a minha vida e os planos adiados que tinha
deixado para trás.
Fingi não ter medo. Dissimulei os meus
receios de tudo, mas essencialmente de os levar para o local errado com consequências
imprevisíveis para todos. Achei que a humildade fazia ali todo o sentido. Que a
prepotência dos galões soava a ridículo tornando-se até perigosa e
inconsequente. O Alferes Chagas prevenira-me que o Furriel Ramos era um
autêntico guerreiro, um perfeito Rambo em quem eu podia confiar nos momentos
mais difíceis. Aproveitei a dica e a oportunidade o melhor que pude. De forma
dissimulada, subalternizei-me ao “Montijo” (alcunha do Ramos) e tive a minha
primeira lição de guerrilha, de comando e de humildade. Ele era um líder
predestinado reconhecido por todos, menos por ele. Um líder natural. O
exercício da sua autoridade vinha-lhe da qualidade do trato e da coerência e
justiça das ordens. Jamais usou as divisas ou os instrumentos administrativos
para exercer a sua autoridade. Os soldados viam nele a segurança imprescindível
para enfrentar as adversidades da mata e da guerra. Eu encontrei ali a muleta
de que necessitava para aos poucos ir compreendendo os mecanismos da
sobrevivência, em todos os sentidos em que se queira entendê-la, que eram os
que mais me importavam aprender. Compreender a guerra e os esquemas do inimigo,
de forma a ser capaz de responder à tarefa inaudita a que me obrigavam de
comandar 160 homens num ambiente hostil, em que a responsabilidade por
quaisquer desastres me seria inexoravelmente assacada, como se de um militar
profissional se tratasse. Na hora de responder pelos erros, não tinha dúvidas
de que o réu seria eu e não os doutos cérebros que me descartavam sem pejo nem
pudor à sombra dos desditosos deveres para com a pátria. Num dos inúmeros encontros
que promovi comigo mesmo, procurando avaliar o peso da responsabilidade e o
nível das consequências que aquela autêntica aventura representava, tomei
algumas decisões que haveriam de me orientar os actos naquele estágio e no
futuro que viesse.
A mais importante, talvez, que acima de
tudo eu devia aprender a preservar a vida e a segurança dos que estavam comigo,
como objectivo primeiro, ou mesmo único, da minha participação na guerra, substituindo
na responsabilidade todos aqueles que, de uma forma tão superficial,
menosprezavam a nossa existência e por vezes até a nossa dignidade. As vitórias
militares e políticas, essas deveriam ficar reservadas aos militares de
carreira, porque era essa a sua responsabilidade e o seu dever, consignados em
juramentos e representações emblemáticas das escolas de formação de que tanto
se orgulhavam. Se não tinham sido capazes de o conseguir até ali, não era a mim
que deveriam pedir para o fazer. A mim parecia-me caber a tarefa exígua, mas de
extraordinária importância para a minha consciência, de apenas procurar não
arrastar mais inocentes para causas perdidas, que aparentemente ninguém parecia
querer entender.
O regresso ao quartel ocorreu por volta da
hora do almoço, sem que o inimigo se tivesse dignado a aparecer, para minha
enorme satisfação, como bem se compreenderá.
Naqueles primeiros dias fui-me inteirando
do funcionamento interno da Companhia. Organização militar e administrativa. O
Capitão (oficial de cavalaria do quadro permanente) deu-me conselhos que
visavam o meu futuro. Não deixei de notar que não havia muita convicção nos
conselhos que me dava, como se ele próprio não acreditasse muito que aquele
autêntico desmando politico-militar viesse a ter algum sucesso. Fazia-o, no
entanto, por consideração e no sentido de procurar transmitir conhecimentos
básicos essenciais que promovessem alguma funcionalidade operacional no
desempenho difícil que me esperava. Dava muita importância a assuntos de índole
administrativa e eu sempre a querer e a questionar a todo o momento temas de
organização táctica militar e da guerrilha. Essa era a minha verdadeira
obsessão. Eu queria lá saber dos papéis. O que me preocupava era saber tudo
sobre IN. As manhas, os defeitos, as virtudes, o rosto. Eu queria era saber
como o enfrentar na hora da verdade. Como me defender e preservar a segurança
dos 160 militares que me iam entregar. No meu espírito, inquieto desde o
primeiro momento em que todos nos convencemos que aquela empresa ia mesmo por
diante, jamais passou a ideia de que o treino teria por objectivo essencial a
preparação para ganhar a guerra, para vencer o inimigo. A ideia, que de um modo
geral nos envolvia a todos, era a de que, naquela guerra, a única coisa que
interessava era regressar são e salvo para retomar finalmente o fio à meada da
vida, interrompida durante aquele período de sacrifício que nos era exigido. A
guerra em si não nos dizia nada. Provavelmente nunca nos disse nada. Mas ali, a
questão era subverter a realidade dos meus 22 anos, despidos de conhecimentos
da vida e de valor zero no domínio da coisa militar, que procuravam inculcar-me
atabalhoada e apressadamente pelos ouvidos e olhos dentro. O resto ficava ao
sabor da sorte, sublimada na molhada de deveres para com a pátria, que me
impingiam a todo o momento, sugando-me os projectos de vida que construíra e
minando, ao mesmo tempo, a minha própria crença do dever de lutar por aquela
pátria longínqua e desconhecida.
A teoria foi sendo integrada com avidez e
desejo de abarcar tudo.
O Capitão percebia a minha sofreguidão e
procurava acalmar-me dizendo-me, inúmeras vezes, que o bom senso e alguma
experiência resolveriam as coisas à medida que fossem acontecendo. Falava-me
também em algo que já ouvira em surdina lá por Mafra. Que o instinto de
conservação acabaria por resolver os momentos mais difíceis. E eu que não
conseguia ver as coisas por esse lado, quando o meu instinto de conservação me
impelia mais para me mandar dali para fora o mais depressa possível. O meu
instinto de conservação eu preferia utilizá-lo noutras circunstâncias menos
delicadas.
Sempre debaixo de olho do Capitão, que me
avaliava até a maneira de comer, de andar e de jogar à bola, passaram a ser-me
atribuídas responsabilidades cada vez mais complexas: comandar colunas de
reabastecimento até Stª. Eulália, ou de autênticos comboios de viaturas civis
de transporte de madeira e café pela estrada de Carmona, idas até Quibaxe
comprar géneros e materiais necessários que a tropa não fornecia, fazer
protecção aos trabalhadores na capinagem das plantações de café e mais um sem
número de actividades que nos ocupavam todo o tempo em que a Companhia não se
encontrava em actividade operacional no mato. As operações no mato, essas
viriam depois.
A minha proveniência da aldeia deve ter
contribuído para um certo hábito de apego às pessoas e aos seus problemas que
sempre comigo conviveu e me fez por vezes até esquecer da guerra para de algum
modo comungar do sofrimento das populações, procurando minorar-lhes as
carências e a amargura que a vida lhes proporcionava na labuta do dia-a-dia
pela sobrevivência. Esta vivência de proximidade permanente e a comunhão dos
problemas fomenta a união, a solidariedade e espírito de corpo, o mesmo
espírito de corpo que nos pediam na guerra na luta contra o inimigo.
Na aldeia os problemas dos vizinhos eram
também nossos. A entreajuda não era bem uma instituição arquitectada com um
determinado fim. Instituía-se naturalmente pela necessidade do apoio mútuo que
nos ajudava a suportar a inclemência dos tempos e o vazio do bem-estar e do conforto.
Uma espécie de mecanismo de sobrevivência que se despoletava por si e nos
entrelaçava de mãos e espírito, comungando as dificuldades e as agruras da
vida. Quem construía uma casa, no dia de colocar o telhado (placa de cimento
que configura a açoteia algarvia) toda aldeia se prestava ao trabalho gratuito
de forma a concluir a obra num só dia, como mandavam as regras de construção.
Quase sempre o dia escolhido era o domingo. Era frequente sobrar gente. Mas
mesmo sobrando, ficávamos todos participando com a nossa presença e espírito
solidário, como que querendo significar que estávamos ali para o que fosse
necessário naquele momento e para o futuro também. Na aldeia, era costume
sobejar boa vontade e solidariedade, único conforto que nos aquecia nas longas
noites de vento frio do inverno político que nos fustigava, escurecendo-nos os
dias amargos de labuta árdua e tempo incerto, corrompendo-nos a fé mas sem
dobrar o ânimo de cada um de nós nem a esperança de que no dia seguinte o sol
nasceria de novo radioso e cheio de vida, retemperando a vontade de continuar a
viver cada dia que passava.
O meu primeiro contacto com os
trabalhadores da fazenda, que distava cinco minutos do quartel do Mucondo, aconteceu
numa dessas protecções aos trabalhos do amanho das terras de cultivo do café.
Mais propriamente, naquela altura, cortar o capim que brotava espontâneo em
volta dos pés dos cafeeiros, retirando-lhes a força necessária ao
desenvolvimento do arbusto e dificultando o trabalho da apanha quando mais
tarde viesse a ocorrer.
Eram cerca de trinta apinhados no camião
da fazenda. Maltrapilhos de pé descalço, olhos tristes raiados de vermelho e
ainda meio ensonados, que resumiam fulgores duma ressaca abruptamente
interrompida na madrugada, mal o sol raiava os primeiros prenúncios de
claridade, antevendo o braseiro sufocante que se estenderia pelo dia inteiro.
Armados de catana, instrumento universal que lhes servia para tudo, até para
fazer a guerra, encostavam-se uns aos outros, cotovelo apoiado no joelho e mão
segurando a cabeça ainda pesada, cochilando réstias de um último sono que
dormitavam até ao local de trabalho. A picada mal tratada agitava o camião em
balanços que dificultavam o curtir dos últimos vapores instilados em mais uma
noitada de Nocal ou Cuca (cervejas angolanas) de mistura com fumos inalados em
grupo de um mesmo cigarro de ervas de feitiço que ajudavam a esquecer mais um
dia vazio de esperança de nada esperar.
À chegada a ordem veio bruta, inesperada e
ameaçadora de um capataz abrutalhado que os trazia como rebanho e se derretia
subserviente quando falava comigo, para logo cuspir fogo e outras
incandescências quando se virava para o pessoal que chefiava no trabalho.
- Tudo p´ró chão, cambada de
preguiçosos..., que continuava com uma interminável ladainha
quejanda na indignidade e prepotência. Aquele vociferar ameaçador acordava-os
repentinamente do sono que traziam ainda desde a fazenda, levando a que se
levantassem apressados empurrando-se uns aos outros na descida do camião,
deixando perceber conhecerem bem as consequências do não cumprimento imediato
das ordens que vinham do capataz.
Ainda o desfile de impropérios não tinha
terminado, e já todos se alinhavam no chão, qual tropa romana disciplinada de
arma na mão pronta para qualquer missão, ainda que submissa apontando para o
chão, aguardando a distribuição das tarefas que sem parar lhes eram destinadas
sem perda de tempo. Em minutos todos trabalhavam com uma eficácia que me
deixava perplexo, enquanto o “Montijo” ia distribuindo o pessoal por pontos
estratégicos que garantissem a segurança de todos.
Com um pequeno pau, que alguns já traziam
de casa e outros fabricavam no momento no arbusto mais próximo, inclinavam
ligeiramente um molhe de capim, para, acto contíguo, aplicarem uma catanada
certeira que o desbastava com uma enorme eficiência, para logo, de forma
automática, uma nova molhada se vergar e cair decepada no chão. Eram autênticas
máquinas que ali me fizeram lembrar os ceifeiros e ceifeiras alentejanos, nos
tempos da ceifa do trigo à torreira do sol nas planícies do Alentejo.
O capataz, percebendo o meu silêncio
enquanto assistia ao descarregar da “manada”, sentiu necessidade de alguns
esclarecimentos, enquanto limpava o suor abundante da testa e alguma espuma do
canto da boca por tão empolgado esforço matinal.
- Isto sr. Alferes, esta malta, são piores
que animais. Só se querem assim.
O assim de facto
incomodava-me.
Eu era ali um novato completamente fora
daquele quadro de entendimentos que me fugiam e atordoavam. A minha
sensibilidade por certo não era para ali chamada. Era um facto que a cena me
tinha impressionado. Sempre me impressionaram as prepotências gratuitas
aplicadas sobre os indefesos e oprimidos. Mas não me sentia à vontade para um
debate de opiniões e pontos de vista às sete horas da manhã, algures, eu sei lá
onde, no norte de Angola, para mais com um capataz com ideias empedernidas e
mais que exercitadas sobre os negros. Desviei um pouco o caminho em busca de
uma outra saída que mantivesse o assunto de pé, embora sem propósitos de
confrontação, que o meu estatuto de maçarico, também naquele campo,
aconselhava. Não me sentia em condições de altercar abertamente sobre aquele
tema. Mas também me estava a custar deixar as coisas assim sem um grãozinho de
areia na engrenagem secular, a que o capataz, pressuroso e cretino, dava
continuidade.
- Há uma coisa que me está aqui a fazer
confusão, disse, enquanto cruzava a G3 no peito repousando-a nos braços, como o
faria a uma criança para adormecer.
- Diga, diga, sr. Alferes, respondia-me o
capataz, revelando alguma inquietação na expressão e nos gestos.
- Já o ouvi hoje dizer várias vezes que
isto é tudo uma cambada de preguiçosos. Mas olhe que eu nunca vi trabalhar
desta maneira. Eles são autênticas máquinas.
- Ó sr. Alferes. Não queira saber o
trabalho que isto nos deu..., retorquia o capataz com ar meio aliviado pela
superficialidade da questão, quando esperava alguma atitude mais contundente (e
por certo insensata) da parte de um maçarico recém-chegado, com ideias ainda
pouco amaciadas pelos hábitos que por ali se haviam firmado desde longínquos
quinhentos anos atrás.
- Ao princípio chegávamos aqui pela manhã
e púnhamo-los a trabalhar até à tardinha.
- De sol a sol..., interpus de forma a
clarificar melhor aqueles imprecisos... pela manhã e... à tardinha.
- Sim... mas não queira o sr. Alferes
saber o que nós passávamos para que fizessem alguma coisa. Aquilo só a
chicote... escapou-se-lhe.
- ...não é que..., quis emendar.
- Claro..., facilitei, no sentido de o
deixar continuar solto e sem peias que mascarassem o discurso que eu desejava
próximo da verdade quanto possível.
- Agora mudámos o sistema. Destinamos uma
determinada área a cada um e quando terminarem... até podem descansar. Quando
todos terminarem, vamos embora. Calculo que hoje por volta das 14 horas
estejamos prontos. Antigamente, nem metade até à noite.
- Bem, então preguiçosos não será
bem o caso. O que estavam era a precisar de alguma orientação..., acrescentei
procurando colocar timidamente alguns escolhos naquela lógica de tempos
imemoriais.
- Pois..., sorria com pouca vontade o
capataz, mastigando aquela imprecisão, procurando enxergar aonde eu queria
chegar, enquanto aliviava o diálogo lançando um olhar de controlo sobre o
andamento dos trabalhos.
Voltou à carga com mil e uma explicações e
rodeios, claro sintoma de achar que não se teria feito entender como desejava e
propósito evidente de esclarecer pruridos que por ali tinham ficado soltos e
incómodos.
O diálogo não fora muito construtivo,
resultando claro que tinham sido mais os desencontros que os pontos de união e
confluência de ideais.
Naquela altura era o tempo do café florir.
Eram extensos mantos brancos a perder de
vista, entrecortados no verde muito vivo da vegetação densa e luxuriante dos
Dembos. Autênticos mantos de amendoeiras em flor, que brotavam da minha memória
exaurida pelos milhares de quilómetros de distância, mas viva e sempre presente
nos momentos de leveza do pensamento, alheio aos entraves de latitudes
distantes, vencidas pelo desejo imenso de agarrar as lembranças recentes,
guardadas em lugar seguro e recuperadas nas noites longas e escuras da guerra.
Ali o tempo era de espera. De espera pelas
14 horas prometidas pelo capataz. De espera que cada um dos trabalhadores
cumprisse o desbaste rápido do capim do seu quinhão. De esperança que o inimigo
não atacasse. De esperança que aqueles quatro meses passassem depressa. Sem
esperança que a guerra tomasse outros rumos e nos trouxesse o entendimento que
todos desejávamos, mas que parecia claro que se perfilava cada vez mais
distante.